O Paradoxal Saul – Agradável e Implacável – I Samuel 13
O capítulo precedente a este 13º de I Samuel, que estaremos comentando, revelou que Deus, como não podia deixar de ser, estava com a razão em repreender o povo e a Saul através das palavras de Samuel, porque Saul veio mui depressa a se desviar da presença do Senhor, já no segundo ano do seu reinado, como veremos neste capitulo.
Depois da grande vitória sobre os amonitas e da euforia da comemoração juntamente com todo o povo de Israel, Saul tomou a iniciativa de dispensar quase que todo o exército, pois ficou com apenas dois mil homens consigo em Micmás de Betel, e outros mil homens ele deixou com Jônatas, seu filho, em Gibeá, da tribo de Benjamim, sua cidade natal, onde havia uma guarnição de filisteus, que permanecia numa parte que haviam conquistado daquele território de Israel (v. 2).
Com esta medida precipitada, Saul deve ter gerado grande descontentamento nas tribos de Israel, pois aqueles que não foram escolhidos como soldados devem ter se ressentido certamente contra o rei, que escolhera a um tão pequeno número deles, sendo tantas as ameaças que tinham dos seus inimigos ao redor.
Isto trouxe a grande instabilidade que nós vemos neste capítulo, quando os filisteus vieram em grande número contra Israel, com trinta mil carros, seis mil cavaleiros e uma infantaria incontável, porque souberam que a guarnição que eles mantinham em Gibeá, havia sido destruída por Jônatas, filho de Saul.
Pelo que se pode inferir dos versos 4 a 10, foi ajustado para a batalha contra os filisteus, que Saul deveria convocar os israelitas a estarem com ele em Gilgal, a mesma localidade em que as tribos confederadas de Israel, sob o comando de Josué, acamparam para a conquista inicial de Canaã.
Saul deveria esperar que se passassem sete dias, ocasião em que Samuel viria a ter com ele em Gilgal e ofereceria sacrifícios e holocaustos ao Senhor, para que eles pudessem entrar em batalha contra os filisteus.
A fé de Saul estava sendo provada pelas circunstâncias adversas que lhe sucederam, sendo a principal delas, o abandono de muitos homens das fileiras do exército de Israel, tendo alguns até mesmo atravessado o Jordão para passarem para o lado das tribos de Gade e Manassés (Gileade).
Ele conseguiu esperar até o sétimo e último dia aprazado, e demonstrou não ter uma fé viva, que é perseverante, porque não aguardou que o dia terminasse, e se apressou em exercer a função de oferecer os sacrifícios e ofertas, que estavam designados para serem apresentados por Samuel.
Ele fez o papel do sacerdote, coisa que lhe era vedada naquela situação específica, pois havia uma determinação da parte de Deus quanto ao que se deveria fazer.
Os Sauls do povo de Deus fazem exatamente isto.
Eles são ativistas e se atrevem a fazer tudo o que é do ministério de outros cristãos, pois julgam que são indispensáveis e os melhores entre o povo de Deus.
Eles determinam o modo pelo qual a obra de Deus deve ser tocada, e não dão grande importância ao que Deus já tenha determinado previamente.
Eles simplesmente atropelam a tudo e a todos, para fazerem afinal, não a vontade de Deus, mas a sua própria vontade.
E o argumento que usam comumente é o de que a obra de Deus deve seguir, e julgam que há muita indolência em todos, e se eles não agirem, o próprio Deus não poderá se encarregar de arrumar as coisas.
Mas por mais paradoxal que possa parecer, muitas vezes estes Sauls são necessários, para que Deus possa levar a efeito o cumprimento dos Seus propósitos, pois pode usar a sua obstinação, para alguns fins úteis, como por exemplo o enfrentamento dos inimigos da Igreja.
Eles foram especialmente úteis nos dias do Velho Testamento, e temos um outro bom exemplo destes na pessoa de Jeú, que exerceu juízos contra a casa de Acabe.
O próprio Sansão, num certo sentido, guardadas as devidas proporções, foi um destes Sauls a que nos referimos.
Deus usa os diversos temperamentos e as condições pessoais para a construção do Seu reino.
No final da construção o que se espera é que os Sauls sejam removidos, pois são como andaimes usados para a construção do edifício espiritual, mas por fim não podem ser partes integrantes da consolidação da construção, em razão do seu caráter destrutivo.
O iracundo pode ser um útil instrumento para destruição e demolição, mas não para a construção das coisas que são estáveis e permanentes, e que são conformes o caráter do próprio Deus.
Saul está cheio de contradições.
Ele pode perdoar os que se opõem tenazmente ao seu reinado e poupá-los da morte, mas pode decidir pela morte do próprio filho, como veremos adiante.
Ele pode ser dócil ao mesmo tempo em que é implacável.
Não há nele a paz e a estabilidade dos que se sujeitam inteiramente ao governo de Deus, e por isso Ele foi escolhido pelo Senhor para ser o representante de um povo, que não queria estar debaixo do Seu governo divino.
Eles experimentariam na prática, sob Saul, o que é estar fora do governo de Deus no coração.
Eles aprenderiam do modo mais duro, apesar de todas as conquistas que Deus concedesse a Israel através de Saul, sobre os seus inimigos, quão doloroso seria ter um regente que não os governasse segundo o que está no coração do Senhor, mas segundo a Sua própria vontade obstinada.
Ele viria a determinar até mesmo a morte de sacerdotes, por mera vingança odiosa na sua perseguição furiosa a Davi.
Saul era um homem dividido pela origem humilde que tivera, e a exaltação que lhe fora concedida pelo Senhor, ao chamá-lo para ser rei de Israel.
Ele misturaria algo da sua antiga humildade com o incontrolável orgulho que o levava a erigir colunas em sua própria homenagem, quando voltava vitorioso de suas campanhas militares (15.12).
Saul não era dado a se arrepender senão a se justificar, e por isso em vez de admitir o erro que cometera ao se apressar em oferecer os sacrifícios no lugar de Samuel, ele tenta se justificar, colocando a culpa no próprio Samuel que demorara, e no povo que lhe estava abandonando.
Ele sempre terá que achar um culpado, mas jamais admitirá a sua própria culpa.
O mesmo nós veremos quando ele não exterminou totalmente os amalequitas e as suas posses, tendo poupado ao seu rei e ao melhor do gado.
Mais uma vez, ele apresentou justificativas a Samuel, quando foi repreendido em não ter cumprido o mandado do Senhor.
Aqui ele não culpou ninguém, mas alegou que fizera aquilo para oferecer o que havia de melhor dos amalequitas em sacrifício a Deus. Ele agia por sua própria deliberação e não era dado a esperar no Senhor.
Não é de se admirar portanto que tivesse recebido da parte de Deus a sentença que vemos nos versos 13 e 14:
“13 Então disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente; não guardaste o mandamento que o Senhor teu Deus te ordenou. O Senhor teria confirmado o teu reino sobre Israel para sempre;
14 agora, porém, não subsistirá o teu reino; já tem o Senhor buscado para si um homem segundo o seu coração, e já o tem destinado para ser príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o Senhor te ordenou.”.
Saul continuaria a reinar mas já estava determinado que não seria um rei que pudesse contar com o favor direto de Deus, privando de comunhão com Ele, tal como ocorreria com o rei que o Senhor já havia buscado para si e que era um homem segundo o Seu coração.
O nome de Davi não foi citado, mas Ele já era conhecido do Senhor na ocasião, ainda que estivesse oculto ao próprio Samuel, a quem se referia aquela profecia, como veremos adiante, pois ele sabia qual era o escolhido do Senhor entre os filhos de Jessé.
Deus guardara segredo naquela ocasião para preservar a segurança do próprio Davi, que ainda era muito jovem, e passaria certamente a ser perseguido por Saul, por ciúme, muito antes do tempo previsto pelo Senhor.
Saul se apegara ao reino de tal forma, que de maneira nenhuma admitiria que outro assumisse o seu cargo, ainda que pela vontade expressa do Senhor.
Ele tentaria eliminar mesmo aqueles a quem Deus tivesse escolhido, como efetivamente o fizera.
Nisto agiu tão diferentemente do próprio Samuel, que concedeu a ele honra no alto em Ramá, dando-lhe o melhor lugar e a melhor parte do banquete, por ter sabido que havia sido escolhido para reinar sobre Israel.
Samuel resignara ao seu próprio cargo de juiz para que Saul assumisse o comando geral da nação, pois era um homem inteiramente sujeito à vontade do Senhor.
Mas há muitos que pensam que a obra do Senhor, o rebanho do Senhor, é propriedade particular deles, e dominam sobre tudo e sobre todos, esquecidos que a obra e o rebanho não pertencem a eles mas ao Senhor.
“2 Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, não por força, mas espontaneamente segundo a vontade de Deus; nem por torpe ganância, mas de boa vontade;
3 nem como dominadores sobre os que vos foram confiados, mas servindo de exemplo ao rebanho.” (I Pe 5.2,3).
“não que tenhamos domínio sobre a vossa fé, mas somos cooperadores de vosso gozo; pois pela fé estais firmados.” (II Cor 1.24).
Deus havia determinado quando escolheu Saul para ser rei, que livraria os israelitas da opressão dos filisteus pelas mãos dele, e assim, a vitória que teriam sobre os filisteus, como veremos no capítulo seguinte, apesar do exército de Israel estar desorganizado e fraco na ocasião, até mesmo sem instrumentos de guerra, porque os filisteus haviam proibido que Israel fabricasse instrumentos de guerra, não seria em razão da fidelidade de Saul ou do agrado do Senhor em relação ao seu reinado, mas por simples misericórdia e fidelidade de Deus em cumprir a Sua Palavra.
Um juízo havia sido determinado sobre a desobediência de Saul, mas os israelitas não seriam afetados por este juízo, que havia sido estabelecido por Deus sobre ele, em razão da sua desobediência.
“1 Um ano reinara Saul em Israel. No segundo ano de seu reinado sobre seu povo,
2 escolheu para si três mil homens de Israel; dois mil estavam com Saul em Micmás e no monte de Betel, e mil estavam com Jônatas em Gibeá de Benjamim. Quanto ao resto do povo, mandou-o cada um para sua tenda.
3 Ora, Jônatas feriu a guarnição dos filisteus que estava em Gibeá, o que os filisteus ouviram; pelo que Saul tocou a trombeta por toda a terra, dizendo: Ouçam os hebreus.
4 Então todo o Israel ouviu dizer que Saul ferira a guarnição dos filisteus, e que Israel se fizera abominável aos filisteus. E o povo foi convocado após Saul em Gilgal.
5 E os filisteus se ajuntaram para pelejar contra Israel, com trinta mil carros, seis mil cavaleiros, e povo em multidão como a areia que está à beira do mar subiram e se acamparam em Micmás, ao oriente de Bete-Aven.
6 Vendo, pois, os homens de Israel que estavam em aperto (porque o povo se achava angustiado), esconderam-se nas cavernas, nos espinhais, nos penhascos, nos esconderijos subterrâneos e nas cisternas.
7 Ora, alguns dos hebreus passaram o Jordão para a terra de Gade e Gileade; mas Saul ficou ainda em Gilgal, e todo o povo o seguia tremendo.
8 Esperou, pois, sete dias, até o tempo que Samuel determinara; não vindo, porém, Samuel a Gilgal, o povo, deixando a Saul, se dispersava.
9 Então disse Saul: Trazei-me aqui um holocausto, e ofertas pacíficas. E ofereceu o holocausto.
10 Mal tinha ele acabado de oferecer o holocausto, eis que Samuel chegou; e Saul lhe saiu ao encontro, para o saudar.
11 Então perguntou Samuel: Que fizeste? Respondeu Saul: Porquanto via que o povo, deixando-me, se dispersava, e que tu não vinhas no tempo determinado, e que os filisteus já se tinham ajuntado em Micmás,
12 eu disse: Agora descerão os filisteus sobre mim a Gilgal, e ainda não aplaquei o Senhor. Assim me constrangi e ofereci o holocausto.
13 Então disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente; não guardaste o mandamento que o Senhor teu Deus te ordenou. O Senhor teria confirmado o teu reino sobre Israel para sempre;
14 agora, porém, não subsistirá o teu reino; já tem o Senhor buscado para si um homem segundo o seu coração, e já o tem destinado para ser príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o Senhor te ordenou.
15 Então Samuel se levantou, e subiu de Gilgal a Gibeá de Benjamim. Saul contou o povo que se achava com ele, cerca de seiscentos homens.
16 E Saul, seu filho Jônatas e o povo que se achava com eles, ficaram em Gibeá de Benjamim, mas os filisteus se tinham acampado em Micmás.
17 Nisso os saqueadores saíram do arraial dos filisteus em três companhias: uma das companhias tomou o caminho de Ofra para a terra de Sual,
18 outra tomou o caminho de Bete-Horom, e a outra tomou o caminho do termo que dá para o vale de Zebuim, na direção do deserto.
19 Ora, em toda a terra de Israel não se achava um só ferreiro; porque os filisteus tinham dito: Não façam os hebreus para si nem espada nem lança.
20 Pelo que todos os israelitas tinham que descer aos filisteus para afiar cada um a sua relha, a sua enxada, o seu machado e o seu sacho.
21 Tinham porém limas para os sachos, para as enxadas, para as forquilhas e para os machados, e para consertar as aguilhadas.
22 Assim, no dia da peleja, não se achou nem espada nem lança na mão de todo o povo que estava com Saul e com Jônatas; acharam-se, porém, com Saul e com Jônatas seu filho.
23 E saiu a guarnição dos filisteus para o desfiladeiro de Micmás.” (I Sm 13.1-23)