Legado Puritano
Quando a Piedade Tinha o Poder
Textos
Existem Duas Vontades em Deus? - Parte 2
Eleição Divina e o Desejo de Deus para que Todos Sejam Salvos

Por John Piper

O Direito de Deus Restringir o Mal e Sua Vontade de Não Fazer Isso

Outra linha da evidência bíblica de que Deus às vezes quer fazer acontecer o que Ele desaprova é sua escolha de usar ou não usar seu direito de restringir o mal no coração humano.
Provérbios 21:1 diz, "Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR; este, segundo o seu querer, o inclina." Um exemplo deste direito divino sobre o coração do rei é dado em Gênesis 20. Abraão estava peregrinando em Gerar e disse ao rei Abimeleque que Sara era sua irmã. Então Abimeleque, a toma como parte de seu harém. Mas Deus fica descontente e o avisa em um sonho que ela é casada com Abraão. Abimeleque protesta a Deus que ele a tinha tomado na sua integridade. E Deus diz (no versículo 6): “Bem sei eu que na sinceridade do teu coração fizeste isto; e também eu te tenho impedido de pecar contra mim; por isso não te permiti tocá-la.”
O que é evidente aqui é que Deus tem o direito e o poder para restringir os pecados dos governantes seculares. Quando Ele faz, é Sua vontade fazê-lo. E quando Ele não faz, é Sua vontade não fazê-lo. O que quer dizer que às vezes Deus quer que seus pecados sejam restringidos e outras vezes Ele quer que eles aumentem mais do que se os tivesse restringido.
Não é uma injusta violação sobre a agência humana que o Criador tenha o direito e o poder de restringir as ações más das suas criaturas. Salmo 33:10-11 diz: "O SENHOR frustra os desígnios das nações e anula os intentos dos povos. O conselho do SENHOR dura para sempre; os desígnios do seu coração, por todas as gerações”. Às vezes, Deus frustra a vontade dos governantes fazendo seus planos falharem. Às vezes Ele faz isso ao influenciar seus corações da mesma maneira como Ele fez com Abimeleque, mesmo que eles não saibam disso.
Mas há momentos em que Deus não usa esse direito, porque Ele tem a intenção de fazer a maldade humana seguir seu curso. Por exemplo, Deus queria matar os filhos de Eli. Portanto, Ele quis que eles não ouvissem os conselhos de seu pai: "Era, porém, Eli já muito velho e ouvia tudo quanto seus filhos faziam a todo o Israel e de como se deitavam com as mulheres que serviam à porta da tenda da congregação. E disse-lhes: Por que fazeis tais coisas? Pois de todo este povo ouço constantemente falar do vosso mau procedimento. Não, filhos meus, porque não é boa fama esta que ouço; estais fazendo transgredir o povo do Senhor. Pecando o homem contra o próximo, Deus lhe será o árbitro; pecando, porém, contra o Senhor, quem intercederá por ele? Entretanto, não ouviram a voz de seu pai, porque o Senhor os queria matar." (1 Samuel 2:22-25).
Por que os filhos de Eli não deram ouvidos aos bons conselhos de seu pai? A resposta do texto é "porque o Senhor os queria matar". Isto só faz sentido se o Senhor tivesse o direito e o poder para restringir a sua desobediência - direito e poder que Ele não quis usar. Assim, devemos dizer que em um sentido, Deus quis que os filhos de Eli continuassem fazendo o que Ele ordenou-lhes que não fizessem: desonrar o pai e cometer imoralidade sexual.
Além disso, a palavra "queria" da cláusula "o Senhor os queria matar", é a mesma palavra hebraica (haphez) utilizada em Ezequiel 18:23,32 e 33:11, onde Deus afirma que Ele não deseja a morte do ímpio. Deus desejou matar os filhos de Eli, mas Ele não deseja a morte do ímpio. Esta é uma forte advertência para não tomarmos uma afirmação, como Ezequiel 18:23, e assumir que sabemos o significado preciso, sem deixar outras escrituras como 1 Samuel 2:25 terem algo a dizer. O resultado de colocar as duas passagens juntas é que, em um sentido, Deus pode desejar a morte do ímpio e em outro sentido, Ele não pode.
Outra ilustração de Deus escolhendo não usar seu direito de restringir o mal é encontrada em Romanos 1:24-28. Três vezes Paulo diz que Deus entregou as pessoas (paredoken) para afundarem ainda mais em corrupção. Versículo 24: "Deus os entregou às concupiscências de seus corações, à impureza, à desonra de seus corpos entre si." Versículo 26: "Deus os entregou a paixões infames." Versículo 28: "E, como eles se não importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convém". Deus tem o direito e o poder para restringir esse mal à semelhança do que fez por Abimeleque. Mas Ele não quis fazer isso. Pelo contrário, a Sua vontade neste caso foi de punir, e parte do castigo de Deus sobre o mal é muitas vezes Ele querer o aumento do mal. Mas isso significa que Deus escolhe que um comportamento venha a acontecer, sendo que Ele ordenou que não aconteça. O fato de que a vontade de Deus é punitiva não muda isso. E o fato dela ser justificadamente punitiva é um dos pontos deste capítulo. Há outros exemplos que poderíamos dar, mas passemos para uma linha diferente de evidências.

Será que Deus se Deleita com o Castigo dos Ímpios?

Nós acabamos de ver que Deus "quis" matar os filhos de Eli, e que a palavra para esse desejo é a mesma usada em Ezequiel 18:23 quando Deus diz não “ter prazer” na morte do ímpio. Outra ilustração desse complexo desejo encontra-se em Deuteronômio 28:63. Moisés é advertido da vinda do julgamento sobre o Israel impenitente. O que ele diz é muito diferente (não contraditório, como irei argumentar) de Ezequiel 18:23. "Assim como o Senhor se alegrava em vós outros, em fazer-vos bem e multiplicar-vos, da mesma sorte o Senhor se alegrará em vos fazer perecer e vos destruir."
Aqui uma palavra ainda mais forte para a alegria é usado (yasis) quando diz que Deus "se alegrará em vos fazer perecer e vos destruir." Somos confrontados com o incontestável fato bíblico de que que em certo sentido, Deus não se deleita na morte do ímpio (Ezequiel 18), e em outro sentido, Ele se deleita. (Deuteronômio 28:63; 2 Samuel 2:25).

Quão Extensa é a Soberana Vontade de Deus?

Por trás desta relação complexa de duas vontades em Deus está a premissa fundamental da Bíblia de que Deus é certamente soberano de uma maneira que o torna governador de todas as ações. R.T. Forster e V.P. Marston tentam superar a tensão entre a vontade de Deus de decreto e a vontade de Deus de comando, afirmando que não existe tal coisa como a soberana vontade de Deus de decreto: "Nada na Bíblia sugere que há algum tipo de vontade ou plano de Deus que seja inviolável". Esta é uma afirmação notável. Sem pretender ser exaustivo, será honesto tocar brevemente em algumas Escrituras que, de fato, "sugere que há algum tipo de vontade ou plano de Deus que seja inviolável".
Há passagens que atribuem a Deus o controle final sobre todas as calamidades e catástrofes provocadas pelo homem ou pela natureza. Amós 3:6: "Sucederá algum mal à cidade, sem que o SENHOR o tenha feito?” Isaías 45:7,"Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas." Lamentações 3:37-38: "Quem é aquele que diz, e assim acontece, quando o Senhor o não mande? Acaso, não procede do Altíssimo tanto o mal como o bem? " Notável nestes textos é que as calamidades em vista envolvem hostilidades humanas e crueldades que Deus desaprova, apesar dEle querer que elas aconteçam.
O apóstolo Pedro escreveu a respeito do envolvimento de Deus no sofrimento do seu povo nas mãos de seus antagonistas. Em sua primeira carta, ele falou da “vontade de Deus” em dois sentidos. Era algo a ser perseguido e vivido por um lado. "Porque assim é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos" (1 Pedro 2:15). "Para que, no tempo que vos resta na carne, já não vivais de acordo com as paixões dos homens, mas segundo a vontade de Deus." (4:2). Por outro lado, a vontade de Deus não era a sua instrução moral, mas o estado de coisas que ele soberanamente faz acontecer. "Porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que praticando o mal." (3:17). "Por isso, também os que sofrem segundo a vontade de Deus encomendem a sua alma ao fiel Criador, na prática do bem." (4:19). E neste contexto, o sofrimento que Pedro tem em mente é o sofrimento que vem de pessoas hostis e, portanto, não pode ocorrer sem pecado.
De fato, os santos do Novo Testamento pareciam viver à luz calma de uma global soberania de Deus sobre todos os detalhes de sua vida e ministério. Paulo expressou-se assim no que diz respeito a seus planos de viagem. Ao despedir-se dos santos em Éfeso, ele disse: "Se Deus quiser, voltarei para vós outros" (Atos 18:21). Aos Coríntios, escreveu: "Em breve, irei visitar-vos, se o Senhor quiser" (1 Coríntios 4:19). E, novamente, "Eu não quero, agora, ver-vos apenas de passagem, pois espero permanecer convosco algum tempo, se o Senhor o permitir" (1 Cor 16:7).
O escritor aos Hebreus diz que sua intenção é deixar as coisas elementares para trás e nos levar para a maturidade. Mas então ele faz uma pausa e acrescenta: "E isso faremos,se Deus permitir" (6:3). Isso é notável, pois é difícil imaginar que alguém pensa que Deus pode não permitir uma coisa dessas a menos que tenha uma visão extremamente alta das prerrogativas da soberania de Deus.
Tiago adverte contra o orgulho da presunção em falar dos planos mais simples da vida sem uma devida submissão à soberania global de Deus se a agenda do dia pode ser interrompida pela decisão de Deus tirar a vida que Ele deu. "Em vez de dizer: Amanhã faremos isto ou aquilo... devíeis dizer:Se o Senhor quiser, e se vivermos, faremos isto ou aquilo."(Tiago 4:15). Assim, os santos em Cesaréia, quando não puderam dissuadir Paulo de correr o risco de ir a Jerusalém "conformados, dissemos: 'Faça-se a vontade do Senhor!'"(Atos 21:14). Deus decidiria se Paulo seria morto ou não, exatamente como disse Tiago.
Este sentido de viver nas mãos de Deus, com Ele regulando até os detalhes da vida, não era novidade para os primeiros cristãos. Eles já sabiam disso pela história completa de Israel, mas especialmente da sua literatura sapiencial: "O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do Senhor" (Provérbios 16:1). "O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos." (Provérbios 16:9). "Muitos propósitos há no coração do homem, mas o desígnio do Senhor permanecerá." (Provérbios 19:21). "A sorte se lança no regaço, mas do Senhor procede toda decisão." (Provérbios 16:33). "Eu sei, ó Senhor, que não cabe ao homem determinar o seu caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos." (Jeremias 10:23). Jesus não tinha rivalidade com esse sentido de viver nas mãos de Deus. Pelo contrário, Ele intensificou a idéia com palavras como essas em Mateus 10:29: "Não se vendem dois pardais por uma moedinha? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai."
Essa confiança de que os detalhes da vida estavam no controle de Deus, todos os dias, estava enraizada em numerosas expressões proféticas do propósito soberano de Deus que não pode ser parado nem frustrado: "Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro, eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; desde o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade”(Isaías 46:9-10, cf. 43:13). "Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? " (Daniel 4:35). "Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado." (Jó 42:2)."Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado.” (Jó 42:2) “Nosso Deus está nos céus, ele faz o que lhe apraz" (Salmo 115:3).
Uma das implicações mais preciosas dessa inviolável confiança na vontade soberana de Deus é que ela fornece a fundação da esperança do "novo pacto" para a santidade, sem a qual não veremos o Senhor (Hebreus 12:14). No antigo pacto a lei foi escrita em pedra e trouxe a morte quando se reuniu com a resistência do coração não renovado. Mas a promessa da nova aliança é que Deus não deixará os seus propósitos por um povo santo naufragar sobre a fraqueza da vontade humana. Ao contrário, promete fazer o que precisa ser feito para fazer de nós o que devemos ser: "O Senhor, teu Deus, circuncidará o teu coração e o coração de tua descendência, para amares o Senhor, teu Deus, de todo o coração e de toda a tua alma, para que vivas.” (Deuteronômio 30:6). "Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis." (Ezequiel 36:27). “Farei com eles aliança eterna, segundo a qual não deixarei de lhes fazer o bem; e porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim. " (Jeremias 32:40). "Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade.” (Filipenses 2:12-13).
Tendo em vista todos esses textos, sou incapaz de entender o que Forster e Marston podem querer dizer com: "Nada na Bíblia sugere que há algum tipo de vontade ou plano de Deus que seja inviolável" (veja nota 26). Também não posso entender como Fritz Guy pode dizer que a vontade de Deus é "desejo e intenção e não uma soberana e efetiva vontade" (ver nota 12). Pelo contrário, as Escrituras nos levam de novo e de novo a afirmar que a vontade de Deus é, por vezes, tratada como uma expressão de seus padrões morais para o comportamento humano e às vezes como uma expressão de sua vontade soberana até mesmo sobre os atos que sejam contrários ao seu padrão.
Isto significa que a distinção entre termos como "vontade de decreto" e "vontade de comando" ou "vontade soberana" e "vontade moral" não é uma distinção artificial demandada pela teologia calvinista. Os termos são um esforço para descrever a completa revelação bíblica. Elas são um esforço para dizer "sim" a toda a Bíblia e não silenciar nada dela. Elas são uma forma de dizer "sim" à vontade salvífica universal de 1 Timóteo 2:4 e "sim" para a eleição individual e incondicional de Romanos 9:6-23.
John Piper
Enviado por Silvio Dutra Alves em 24/06/2013
Comentários
Site do Escritor criado por Recanto das Letras