Legado Puritano
Quando a Piedade Tinha o Poder
Textos
Doutrina Suprema
Por. C. H. Spurgeon

“Ora, tudo provém de Deus” - II Coríntios 5:18

Gostaria que vocês considerassem este texto como um resumo de tudo o que tenho pregado durante estes anos. Tenho me empenhado, constante e continuamente, em sustentar que a salvação provém da vontade de Deus, não do livre-arbítrio do homem; que o homem não é nada, mas Jesus Cristo é o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim. E creio que posso dizer com toda a sinceridade “Ora, o essencial das coisas que temos dito é” — “tudo provém de Deus”. Que resumo abrangente, meus irmãos! Estas palavras compreendem a dimensão de tudo o que se passa na mente humana — “tudo!”; e proclamam a quem tudo pertence — a “Deus”. Compreenda esta dimensão, se for capaz: “Tudo!” O que falta? Certamente todas as coisas desejadas por um cristão estão contidas na palavra “tudo”. No entanto, mesmo não sendo suficientemente abrangente, nosso resumo possui uma expressão ainda melhor, superior a todas as outras, porquanto tudo provém de Deus e Ele continua o mesmo, tão rico como sempre. “Tudo provém de Deus”. Se estivermos com sede, eis as torrentes que nunca vão se exaurir. Se estivermos com fome, certamente haverá pão suficiente para comer e guardar. Se formos pobres, eis aqui tesouros e riquezas absolutamente inesgotáveis, pois temos tudo, e tudo em Deus.
Nesta manhã, espero fazer duas coisas: primeiro, estabelecer, de forma clara e distinta, a doutrina dessa sentença; e em seguida, demonstrar a excelência da sua aplicação prática.
1. Comecemos com A PRÓPRIA DOUTRINA: “Tudo provém de Deus”. Para que possamos compreendê-la melhor, terei de subdividi-la e analisá-la primeiramente pelo que ela é; depois pela sua forma e, em seguida, pelo seu significado.
“Tudo provém de Deus!” A que se refere o termo “tudo” aqui? A resposta se encontra no contexto — tudo na nova criação provém de Deus. Não é necessário relembrarmos disso com relação à antiga criação. Ninguém, exceto o incrédulo, jamais pôde afirmar que alguma coisa existisse à parte do Criador. Nós cremos que Ele derramou os raios de luz de Seus aposentos celestiais sobre as águas e estendeu o firmamento como uma tenda, para nele habitar; que as ilhas foram formadas por Suas mãos e os ventos estão, como sempre estiveram, sob Sua direção e controle; nada existe, e nada existirá, a menos que Deus ordene, estabeleça e lhe dê sustentação. Quanto à questão da nova criação, é admirável que sempre haja alguma controvérsia. Não chamamos de incrédulo ao que ensina que na antiga criação algumas coisas vieram do homem? Que nome daremos, então, a quem ousar dizer o mesmo da nova criação da graça? Se a primeira questão é uma heresia, a segunda é igualmente execrável, ou ainda pior; pois uma se refere às obras externas de Deus, mas a outra coloca sua mão sacrílega nas obras internas da Sua graça, arrancando as jóias mais brilhantes da Sua coroa e enterrando-as no pó. Nós defendemos, e sempre iremos defender, que tudo, sem exceção, na nova criação, provém de Deus, única e exclusivamente de Deus.
Mas você pergunta: “Que coisas?”. Nós respondemos — todas as coisas que se referem à nova natureza — tudo o que diz respeito aos nossos novos privilégios e às nossas novas atitudes - qualquer coisa concernente à nova natureza provém de Deus. O desejo pessoal por Cristo no coração contrito do pecador provém de Deus. A primeira centelha de esperança a brilhar na mente pobre e ignorante provém de Deus. O primeiro vislumbre da fé recém-adquirida, quando os olhos se voltam para o Salvador, provém de Deus. Os primeiros indícios do amor divino dentro da alma provêm de Deus. Sejam os homens deixados à sua própria mercê e sua natureza corrompida se deteriorará, apodrecerá e produzirá fungos da pior espécie. A vida que provém de Deus, no entanto, jamais brotou naturalmente de um coração morto. Qualquer coisa boa em sua origem, bem como em sua perfeição, “desce do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança”. Alguns parecem ensinar que o homem deve dar o primeiro passo na salvação e Deus cuidará do resto. Não, cavalheiros, se o homem pode dar o primeiro passo, ele também pode dar o último, e todos os demais. Se o homem, morto em seus delitos e pecados, pode despertar a si mesmo, certamente ele poderá manter a vida da qual ele mesmo é o autor. Se o homem, corrompido, desprovido de dignidade e afastado de Deus, pode dizer, sem o despertamento da graça: “Vou me arrepender, mudar meus caminhos e buscar a Deus”, e se ele pode tomar essa resolução por si mesmo e por vontade própria, então, de jeito nenhum há lugar para Deus em sua salvação. Que o homem, então, tenha tudo e receba toda a glória! Saibas, porém, meu ouvinte, que não tens sequer um bom pensamento em teu coração que não venha de Deus; se algo te diz: “Levanta-te, e vai ter com o Teu pai” (Lc. 15:18), essa voz provém de Deus. Se as tuas entranhas começam a se contorcer diante do Pai, a quem tu ofendeste e enfureceste, e se os teus pés querem abandonar as montanhas do pecado e da vaidade e trilhar a estrada da retidão, é a mão do Pai que te convida, é a voz do Salvador que bondosamente te leva a buscar a Sua face, pois “Tudo provém de Deus”.
Tudo o mais que diz respeito à nova natureza provém de Deus; não apenas a primeira transformação da mente, mas também o querer e o realizar, e o seu pleno desenvolvimento. O crente é forte? Isso provém de Deus. Ele está de pé e não cai? Sua sustentação provém de Deus. Ele continua fiel à aliança em meio às tentações e, no dia da tribulação, mantém-se firme junto ao Mestre? Sua integridade provém de Deus. Não há nada nele, por natureza afastado de Deus, que não seja vil e enganoso. “Em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum.” Se há algo de bom em minha natureza, se fui transformado pela renovação da minha mente, se estou regenerado, se passei da morte para a vida, se fui tirado da família de Satanás e adotado na família do amado Filho de Deus e, se já não sou filho da ira, mas cidadão dos céus, então todas essas coisas provêm de Deus e, em nenhum sentido e em qualquer medida, de mim mesmo.
Mais ainda, da mesma forma que a nova natureza provém de Deus, os novos privilégios decorrentes dessa nova natureza também provêm dEle; e quais são eles? Sem dúvida são ricos e preciosos. Há o perdão, a purificação de todos os nossos pecados; quem dirá que ele não provém de Deus? Há a justificação, a cobertura de vestes brancas como a neve que nos tornará participantes da herança dos santos na luz; não provém isso de Deus? Há a santificação, que corta a própria raiz do pecado e coloca a velha natureza adâmica sob os pés do recém-nascido em Cristo; não provém isso de Deus? Há o privilégio da adoção, dado pelo Pai a tantos quantos creem em Seu Filho unigênito, para que se tornem filhos de Deus. Ó, Senhor, certamente essa adoção provém de Ti! Há a comunhão, pela qual, por meio de Jesus Cristo, temos acesso ao Pai por um mesmo Espírito. E quem alguma vez ousou pensar em comunhão sem a inefável graça do Altíssimo? Estou certo, meus irmãos, de que aqueles que já compreenderam a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade das misericórdias e privilégios da aliança, jamais encontraram um único privilégio que não viesse de Deus. Temos andado pelas vastas planícies da maravilhosa graça de Deus, mas nunca vimos sequer uma planta ou uma flor que não tenha sido semeada ou plantada por Ele. Quando tivermos entrado na casa do tesouro e tirado os sapatos de ferro e de bronze, o capacete de proteção e a espada de aço; quando tivermos recebido a imarcescível coroa de glória, seremos obrigados a confessar alegremente que todas essas coisas provêm de Deus. É impossível conceber uma única dádiva da graça, um único dom de misericórdia, que venha de nós mesmos e não de Deus.
Mais uma vez, para concluir este resumo, todas as ações da nova natureza provêm de Deus. Veja um missionário em algum lugar longínquo; ele deixou casa e família e todos os confortos da terra natal para lutar por Cristo entre pessoas que irão desdenhar dele, desconfiar de seus motivos e retribuir sua abnegação com perseguição. Percebem que ele está nas mãos de Cristo, arriscando a vida até a morte? Esse homem, afligido por um febre típica da região em que foi viver, enquanto jaz de cama com um triste intervalo para reflexão, jamais se arrepende da decisão tomada. Ele recupera as forças o suficiente para se arrastar para debaixo de uma árvore e fica ali, e, em vez de renunciar aos votos de dedicação a seu Mestre, ele os renova, pregando mais uma vez a Palavra. Ele continua a trabalhar até a exaustão e entrega seu corpo à terra, longe do lar e da terra natal; uma testemunha contra os incrédulos, enviado por Deus para pregar-lhes o evangelho. Devemos aplaudir o homem? Devemos entoar-lhe canções de louvor? Vamos honrá-lo, pois agiu com coragem. Vamos nos lembrar, no entanto, de que todas as coisas boas nele vieram de Deus. Não fosse por Deus, ele teria sido negligente, indiferente e descuidado para com a alma dos homens. Mártires são queimados na fogueira? Crentes em Cristo são presos e apodrecem no cárcere? Heróicos filhos de Deus lutam contra a corrente do seu tempo e parecem deter a enchente com a força do próprio braço? Será que os cristãos estão preparados para suportar a ofensa e o escárnio, a censura e a reprovação, por amor de Jesus? Com certeza, tudo provém de Deus. Um cristão é magnânimo, generoso e preocupado com os problemas alheios? Outro é fervoroso na oração e zeloso no serviço? Você pode encontrar um terceiro que viva tão próximo do Senhor que sua face pareça brilhar com a luz do amor de Jesus - todas estas coisas provêm de Deus. Nenhuma virtude é atribuída ao homem. Coisas boas são estranhas ao coração humano. Elas não são como as ervas daninhas que brotam naturalmente do solo árido de que é feito o coração do homem, mas flores raras e escolhidas, semeadas de cima pela mão do Espírito e plantadas nesse solo estéril. Oh, lembremo-nos sempre de que qualquer coisa boa que possamos fazer, sentir ou pensar provém de Deus. Irmãos, repudiem com ódio e aversão qualquer doutrina que os leve a pensar que alguma obra ou graça, ou qualquer coisa justa, pura, amável ou de boa fama no homem venha do próprio homem. Pois, embora se apresente em trajes sóbrios, embelezada e lhe pareça bastante honesta, tal doutrina é a meretriz do catolicismo disfarçada. É só examiná-la um pouco melhor e logo se chegará à salvação pelas obras. Ergam sempre o bom e velho estandarte calvinista, o mesmo empunhado por Agostinho e entregue por Paulo a nós diretamente de nosso mestre Jesus; e defendam, creiam e afirmem, sem nunca se desviar, que tudo na nova criação provém de Deus.
2. A segunda divisão da doutrina deve ser Como! Como, e em qual sentido, tudo provém de Deus? Tudo na nova criação, desde o planejamento, provém de Deus. Deus, antes de o mundo existir, planejou a nova criação com a mesma exatidão e sabedoria com que planejou a primeira. Alguns parecem pensar que Deus realiza Sua obra aos poucos, fazendo alterações e acréscimos enquanto trabalha. Não conseguem acreditar que Ele tivesse um plano; eles creem que até um reles arquiteto terreno idealize sua própria construção, ainda que seja um casebre, mas o Deus Altíssimo, Criador dos céus e da terra, quando diz: “Eis que faço novos céus e nova terra, nos quais habita justiça”, não tem plano algum, e deixa tudo ao capricho dos homens. Ele não deve ter decretos, nem propósitos, nem determinações, mas os homens podem fazer o que quiserem e, por isso, o homem, literalmente, usurpa o lugar de Deus, e Deus se torna dependente do homem. Não, meus irmãos, em toda a obra da salvação Deus é o único e supremo Criador. Ele planejou quando e como cada um do Seu povo seria levado a Ele; Ele não deixou Seus salvos à mercê da sorte, ou pior ainda, da vontade corrompida do homem; Ele não permitiu que a escolha de Seus eleitos fosse mera obra do acaso, mas gravou o nome de cada um deles nas pedras do peitoral eterno do grande Sumo Sacerdote. Ele não permitiu que uma única estaca, um único fio de linha, um único pedaço de lona ficasse para depois - o tabernáculo inteiro foi entregue conforme o modelo recebido no santo monte. Na estrutura do templo da graça, cada pedra foi ajustada e cinzelada no decreto eterno, seu lugar ordenado e estabelecido; nenhuma pedra será retirada da pedreira antes do tempo, nem colocada em qualquer outra posição que Deus, segundo o conselho da Sua vontade, não tenha ordenado. Tudo na nova criação provém de Deus, desde o seu planejamento.
Ai de nós, no entanto, se Deus simplesmente tivesse planejado e deixado a execução por nossa conta! Tudo na nova criação provém de Deus, tanto na compra quanto no processo de aquisição. Um preço foi pago pelo povo de Deus: qual preço? O precioso sangue do Senhor Jesus Cristo! Quem contribuiu com um centavo sequer para a riqueza do tesouro que comprou a nossa alma? Não foi Ele quem, sozinho, pisou as uvas do lagar? Será que alguém O ajudou a suportar o peso, o peso intolerável da culpa que oprimiu o sofrido Senhor, quando carregou Ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados? Qual braço O ajudou, ou qual pé, a não ser o Dele mesmo, esmagou o inimigo? Não, ó Senhor! Tu nos remiste com o Teu sangue; nós não tivemos nenhuma participação nisso; Tu foste o Alfa e o Ômega e toda honra é somente Tua.
E, da mesma forma que o plano provém de Deus, e o pagamento provém de Deus,  também tudo provém de Deus quanto à aplicação e ao esclarecimento na consciência de cada um. A cruz de Cristo não é simplesmente levantada à vista de todos e depois deixada lá para cada um decidir se quer ou não olhar para ela. Ela continua sendo livre para todas as almas viventes; no entanto, Deus determinou que ela não será negligenciada. Há um número, que ninguém pode contar, daqueles que serão constrangidos pela graça a abraçá-la como a esperança da alma. Jesus não morreu em vão, porque Deus tornará os homens dispostos no dia do Seu poder. Eles são duros, mas Deus pode quebrantar seu coração; são obstinados, mas Ele pode dobrar seus joelhos; eles não virão, mas Ele pode fazê-los vir. Deus tem a chave que pode dar corda ao coração humano e fazê-lo andar como Lhe apraz. Não pense que o homem é um ser independente, tão livre que Deus não possa controlá-lo; que, quando Se fez homem, Deus deificou a humanidade e deixou de lado a Sua própria divindade. O homem é livre para ser responsável, mas não está livre da sua constante tendência e inclinação para o mal. No entanto, ele está sujeito à restrição ou limitação de Deus. Se ele age certo, é pela restrição de Deus, não pelo seu livre-arbítrio. Quando ele age errado, Deus o deixa por sua própria conta; mas, sempre que age certo é porque a mão de Deus está com ele. O homem, por natureza, é como um cavalo chucro correndo em direção ao precipício; se é detido e desviado do perigo, é porque tem um ótimo cavaleiro, o qual sabe como puxar as rédeas e guiá-lo para onde quiser; e, mesmo que o cavalo empine e escoiceie, e queira mudar de direção, o cavaleiro consegue dominá-lo e virá-lo, fazendo-o ir como Ele deseja e conduzindo-o como Lhe apraz.
Nessa questão, a verdade é que todo esclarecimento do evangelho para a alma do homem provém de Deus. E não é só isso. As obras da nova criação provêm de Deus não só no planejamento, aquisição e aplicação, mas também na sua preservação. Deixe o cristão preservar, por si mesmo, a graça conquistada, e ele estará perdido. A chama se acenderia, mas o sopro do diabo a apagaria. O combustível está queimando, mas corte a ligação entre ele e o gasômetro, e a chama se apaga. O cristão vive, mas é porque Cristo vive, e porque ele é um com Cristo. Ó, Senhor, se cessasses de enviar as correntes da Tua graça, a Tua gloriosa igreja, com toda a sua beleza, seria como uma flor caduca; toda a sua força se desvaneceria de fraqueza, e ela mesma, apesar de ser como uma torre em sua glória, ruiria até o chão e jazeria no leito de pedras do vale. Na preservação, tudo provém da graça, e assim, tudo provém de Deus.
Mais ainda, tudo deverá vir da graça de Deus até o final. Quando você e eu subirmos os montes celestiais em direção aos portões do Paraíso, os últimos passos virão de Deus, da mesma forma que vieram os primeiros. E, quando estivermos nas ruas de ouro com as nossas vestes brancas, estou certo de que não teremos sequer uma palavra para cantar sobre o livre-arbítrio, ou sobre nós mesmos, mas o nosso brado será: “Àquele que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados” — a Ele seja toda a glória eternamente. Na terra, os homens podem defender a doutrina que quiserem, mas nos céus, não podem defender outra coisa além da graça livre, rica e soberana. A canção nunca foi dividida e nunca será. Não haverá estrelismo para estragar a harmonia, mas todos os corações entoarão a mesma melodia, e todas as línguas se confundirão na mesma canção — “Tu o fizeste; ó Senhor, tu o fizeste —
A graça toda obra irá coroar
Pela eternidade sem par
Nos céus está a pedra superior
Que bem merece todo o louvor
3. Meu terceiro ponto sobre a doutrina deve ser “Por quê”. Por que “tudo provém de Deus”? Como podemos entender claramente este ponto? Não usarei argumentos, somente aqueles que são claros e evidentes para todos.
Tudo na graça deve vir de Deus, pois temos total consciência de que nada pode vir do homem. O homem está em tal posição que nada pode vir dele. Lázaro jazia como um cadáver em seu túmulo; ele é despertado; sua mortalha é retirada; ele vive, ele respira. Diga-me, com sinceridade: sua ressurreição deveu-se em alguma parte a ele mesmo? Bom, cavalheiro, sua mente deve estar realmente meio enganada. O que aquele morto poderia fazer por sua própria ressurreição? Com certeza esse deve ser um fato filosófico que poderia abalar todos os homens racionais, pois aquilo que não existe não pode trazer a si mesmo à existência. Portanto, a minha nova natureza, a qual não existia antes de Deus dá-la a mim, não poderia trazer a si mesma à existência. E, no entanto, você diz que um morto pode reviver a si mesmo, ou, pelo menos, fazer alguma coisa nesse sentido. Ó, cavalheiro, não é possível que você queira dizer isso, não mesmo. Arrazoar com você foi ridículo. Você precisa perceber que, se um homem estiver morto, não há nada que ele possa fazer; é preciso um poder superior para dar-lhe a vida. Com o pecador morto em pecado é a mesma coisa, o que pode ele fazer? A menos que as Escrituras sejam um exagero, a menos que você esteja preparado para jogar fora a passagem onde é dito que estamos mortos em nossos delitos e pecados, não vejo como você possa imaginar que o homem seja capaz de fazer qualquer coisa na obra da graça. Ele pode trabalhar quando Deus o dispõe a isso, e ele vai; ele pode se mover quando Deus lhe dá forças e ele vai, então, com alegria e espontaneidade; mas, até aí —
Quão incapaz jaz a natureza culpada,
Inconsciente do seu próprio estado,
O coração morto nunca será elevado
À Deus e à Sua eterna morada.
Até que uma pedra se lance sozinha em direção ao sol, até que o mar se incendeie sozinho, e até que o fogo, por sua própria natureza, destile água de suas próprias entranhas, então, e só então, a humanidade depravada poderá exalar bondade de dentro de si. Tudo deve ser pela graça, unicamente pela graça.
Deixe-me dar uma outra razão pela qual estamos absolutamente certos de que todas as coisas na obra da graça provêm de Deus. Está expressamente escrito que toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm lá do alto. Ora, a palavra “todo” é muito abrangente; ela não exclui um único caso. Existe alguma boa dádiva? Não está escrito que algumas boas dádivas, alguns dons perfeitos são lá do alto, mas que todos são; não tenho nenhuma dúvida de que essa regra se aplica a qualquer boa dádiva que você possua — a qualquer boa dádiva que de fato está no coração de qualquer um que viva na terra. Deus seria apenas em parte o Pai das luzes se houvesse luz vinda de qualquer outro lugar; Deus seria apenas em parte o benfeitor do mundo se houvesse outras fontes de onde o mundo pudesse tirar seu sustento e outros meios para levar as almas para o céu.
Outra vez, temos certeza absoluta de que todas as coisas provêm de Deus, pois toda a glória é de Deus. Ora, se toda a glória é de Deus, isso significa que todo o trabalho foi feito por Ele; pois onde há trabalho, precisa haver mérito. Se foi o homem quem fez, ele pode reivindicar a honra. Se fui o meu próprio salvador, vou reivindicar a honra e a dignidade; e nada, a não ser uma força superior, pode arrancar de mim a glória que eu mereço. Mas se foi Deus quem fez, e tenho consciência de que sou um ser inanimado em Suas mãos até que ele me dê vida, então devo colocar todas as minhas glórias aos Seus pés e glorificá-lO como Senhor de todas as coisas. Estou certo de que, quanto a isso, não pensamos de modo diferente sobre o fato de Deus ter toda a honra; no entanto, se nosso pensamento difere quanto a Ele fazer todo o trabalho, podemos ter uma base justa para discutir o Seu direito de receber toda a glória.
Ah, homens e irmãos, se me faltassem argumentos, a sua própria experiência testemunharia a meu favor. Como cristãos, vocês são constrangidos a sentir que “todas as nossas obras Ele as faz por nós”. Se podem dizer: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.”, digam, então, com certeza — tento explicar da melhor forma possível — “Tudo provém de Deus”. Agarrem cada misericórdia da aliança e cada bênção da graça, mas digam que todas as coisas, em todos os sentidos, provêm total e inteiramente de Deus, o grande doador de tudo.
II. E agora, nesta segunda parte do meu sermão, proponho-me a mostrar brevemente AS TENDÊNCIAS EXCELENTES DESSA DOUTRINA.
Há uma coisa sobre as doutrinas do evangelho que, em minha opinião, sempre as recomenda: invariavelmente elas chamam a atenção das pessoas, levando-as a pensar. Quando você ouve um sermão no qual a graça de Deus é exaltada, talvez fique ofendido, fique zangado, porque os pontos de vista doutrinários não se afinam com o seu orgulho carnal. Ficar zangado é uma das coisas mais saudáveis que podem lhe acontecer. Não pense que o sermão foi desperdiçado, só porque o deixou “contrariado”; não julgue que ele foi perdido, só porque o deixou irritado. Talvez houvesse apenas esta pequena brecha em sua armadura por onde a flecha pudesse acertá-lo, ou seja, a sua própria ira contra a verdade. Conheço muitas pessoas que admitem francamente ter ficado perturbadas após chegar a esse ponto, e acabaram perdendo o sono. Elas detestaram o pregador e detestaram o tema, mas, cerca de um mês depois, acabaram voltando; sua aversão pelo assunto foi tanta que se sentiram compelidas a ouvi-lo novamente. Elas não conseguiam compreender bem o que era; na verdade, nem poderiam, pois ainda se atinham à sua própria opinião; mas diziam consigo mesmas: “Em toda minha vida, nunca pensei tanto em religião.” Nestas doutrinas, há algo dirigido diretamente à alma do homem. Outras escorrem como óleo sobre uma laje de mármore; esta, no entanto, entalha a pedra, lapidando-a rapidamente. As pessoas não conseguem deixar de sentir que há alguma coisa, que, se fizerem alguma objeção, a doutrina ganhará força, obrigando-as a se perguntar: “Será que é verdade?” Elas não se contentam em atacá-la e deixar o assunto para lá. A doutrina toma conta da sua capacidade de raciocínio, levando-as a se perguntar se as coisas são realmente assim. Mas o que é digno de nota é que nos lugares onde essa doutrina é pregada - que a salvação provém de Deus, e de Deus somente - há reavivamento; sempre houve reavivamento enviado por Deus da verdadeira religião. Para dar uma ilustração prática: no Continente europeu, muitas pessoas, com bons motivos para pensar desta forma, me disseram que a igreja luterana está bem perto de se desviar da fé e se tornar unitariana, neológica ou coisa parecida, o que não ocorre com as igrejas calvinistas ━ lá, elas permanecem firmes. Há um sal nessa doutrina que preserva a verdade; há nela um sabor e uma pungência que mantêm direita a constituição do homem. Ela é como uma enorme âncora sobressalente; talvez pareça difícil de ser manejada e, nestes tempos modernos, dizem até estar bastante enferrujada, mas, nos dias de tormenta, terá de ser lançada novamente ao mar. Quanto mais eu prego, mais me preocupo em não dar testemunho duplo a respeito dessa questão e deixar claro e evidente que a salvação provém de Deus; que todas as coisas, de fato, na nova criação da graça, provêm de Deus, e de Deus somente.
Oh, quanto entusiasmo essas verdades suscitam na mente daqueles que creem nelas! Ouço-as sendo pregadas por homens simples, iletrados, incultos, e suas congregações ficam banhadas em lágrimas. Não há indiferença no semblante dos ouvintes. Eles as ouvem como se ouvissem a     própria Palavra de Deus, e sentem o seu poder. No decurso desta semana, preguei da forma mais simples possível para um público de vinte a trinta mil galeses, e que visão eu tive quando todos a uma só voz exclamaram “Aha! Amém! Amém ━ Glória” durante o sermão, arrebatados pelo entusiasmo, pois estavam ouvindo novamente as boas e antigas verdades que Christmas Evans costumava trovejar sobre eles, e que o País de Gales ainda defende integralmente, muito embora os ingleses prefiram rejeitá-las e desprezá-las. Existe algo nessas verdades que pode levar um homem a fazer grandes coisas. A espada de Cromwell era tão afiada e o seu braço tão forte porque ele conhecia o Senhor dos exércitos e confiava em Seu grande poder, e acreditava na Sua graça arrebatadora. Isso tornou os Ironsides (cavaleiros liderados por Cromwell) invencíveis; jamais houve homens como eles. O braço do calvinista é sempre forte; quem é de Deus e não do homem, quem olha para a graça e o propósito de Deus e Lhe dá toda a glória não é alguém que se curve diante de um tirano ou lamba os pés de qualquer criatura. Ele sabe que é eleito de Deus e se mantém de pé, e enquanto está de pé, está cheio de fervor, com um entusiasmo que o faz trabalhar e o constrange a servir à causa de Deus e da verdade.
Aliás, isso talvez seja muito pertinente. Tenho mais coisas a falar sobre essa doutrina. O fato, da conversão e da salvação virem de Deus, é uma verdade humilhante. E é devido a esse caráter humilhante que os homens não gostam dela. As pessoas dizem: “não gosto” de saber que Deus precisa me salvar para que eu seja salvo, e que estou em Suas mãos como barro nas mãos do oleiro. Bem, achei que não iriam gostar mesmo, quem pensaria nisso? Se tivessem gostado, talvez não fosse verdade; mas o fato de não gostarem é uma evidência indireta da sua veracidade. Não gosto de saber que “Ele precisa fazer todo trabalho em mim“; quem poderia me rebaixar a tanto? Onde fica o meu orgulho? Não há lugar para ele. Por qual lei? Pela lei das obras? Não, pela lei da graça. A graça tapa a boca de quem se vangloria, fazendo-a calar de uma vez por todas; e então, ela retira a mão e essa boca não teme mais falar ao homem, embora trema ante o simples pensamento de tomar a honra e a glória de Deus. Devo ainda dizer ━ preciso dizer ━ que a doutrina que deixa a salvação a cargo da criatura e lhe diz que isso só depende dela é exaltação da carne, e uma desonra a Deus. No entanto, a doutrina que coloca o homem, o homem caído, nas mãos de Deus, e lhe diz que, embora ele tenha se autodestruído, sua salvação deve vir de Deus, essa doutrina humilha o homem até o pó e, assim, ele estará no lugar certo para receber a graça e a misericórdia de Deus. Tal doutrina é humilhante.
Mais uma vez, essa doutrina dá um golpe fatal na autossuficiência. O arminiano quer exaltar a ação do homem; nós queremos matá-la de uma vez por todas, para lhe mostrar que ele está perdido e arruinado, suas ações não são, de forma alguma, iguais à obra da conversão, e ele precisa olhar para cima. Os arminianos procuram fazer o homem levantar-se, nós procuramos derrubá-lo e fazê-lo sentir que, desse modo, ele está nas mãos de Deus, precisa submeter-se a Ele e clamar “Senhor, salva-nos! Perecemos!”. Nós sustentamos que o homem nunca estará tão perto da graça como quando começar a sentir que não pode fazer absolutamente nada. Quando ele diz: “Posso orar, posso crer, posso fazer isso e posso fazer aquilo”, as marcas da autossuficiência e da arrogância estão na sua testa. Contudo, quando ele se ajoelha e clama:
“Ó, por isso, em mim força não há,
minha força aos Teus pés está”
cremos que Deus o abençoou e a obra da graça trabalhou em sua alma. Ó, pecador, não penses que o teu braço sozinho pode alcançar a vitória. Clama a Deus e suplica-Lhe que tome tua alma em Suas mãos, pois não podes ser salvo a menos que Ele faça isso por ti. Bendize-O pela promessa que diz: “o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora”. Oh, clama a Ele: “Senhor, chama-me com Tua graça e eu Te seguirei; faze toda obra em mim, leva-me para junto de Ti e salva-me!” Não é para você mesmo que o convidamos a olhar, nem para as suas preces, nem para a sua fé, mas para Cristo e Sua cruz, e para o Deus que “pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Ele”.
E há também nessa doutrina consolo para o coração atribulado. Se todas as coisas provêm de Deus, ó minh’alma, não deixa que o teu espírito seja agitado e amedrontado pela tempestade. “Tudo provém de Deus”; se houvesse alguma coisa vinda de mim mesmo, eu seria um homem perdido. Se vamos construir uma grande ponte e eu puder colocar uma das pedras, a construção será feita ao nosso bel-prazer e irá ruir. Se a colocação da pedra fundamental ficar a meu encargo, garanto que a construção não ficará de pé. Da mesma forma, se na obra da salvação alguma coisa depender de mim, tudo irá ruir; no entanto, se tudo for garantido e estabelecido pela vontade e pelo querer do Pai Eterno, a obra resistirá e ficará segura. Oh, como esses pensamentos são alegres para o cristão: sua alma está segura, ele colocou sua vida nas mãos de Cristo e agora tem seu amparo nEle, ele se entregou aos cuidados do seu Senhor e Mestre e agora sabe que, haja o que houver, Cristo é seu pavês e escudo e nada o afligirá, pois Jesus o guarda e protege todos os dias, e o guardará em segurança até o fim. Não sei onde nossos irmãos arminianos encontram consolação, mas sei que, se eu acreditasse em sua doutrina, seria levado à loucura; contudo, crendo como creio, que aqueles em quem Deus inicia o processo da salvação serão totalmente salvos, e nenhuma pedra do edifício inteiro irá faltar ou quebrar, minha alma pode assim cantar:
“Esta aliança permanece inabalável
Ainda que as colunas da terra se dobrem
O forte, o débil e o miserável
São um em Jesus, que os sustém”
Tenho ainda mais uma coisa a dizer sobre essa doutrina. Ela dá ânimo ao pecador. Pecador, pecador! Venha para Jesus, pois “tudo provém de Deus”. Você está nu; o manto com o qual será coberto provém de Deus. Você está sujo; o lavar regenerador provém de Deus. Venha e seja lavado. E ainda que você seja indigno, sua dignidade deve provir de Deus. Venha como está e Ele o purificará. Você é culpado, seu perdão provém de Deus. Venha para Ele e Ele lhe dará o perdão gratuitamente. Mas, você diz: “sou duro de coração”; um novo coração provém de Deus. Venha para Ele, e Ele lhe dará um coração de carne e tirará seu coração de pedra. Mas, você diz: “não consigo orar”. A verdadeira oração provém de Deus; Ele derramará sobre você o Espírito da súplica. Mas você diz: “a minha própria vinda precisa vir de Deus”. Ah, bendito seja Deus por isso. E, assim, se agora você sente alguma coisa lhe dizendo: “preciso ir e confiar em Cristo”, isso provém de Deus. Oh, venha com alegria, pois não há nenhuma exigência, tudo provém de Deus. Seu coração é estéril? A fertilidade provém de Deus. Seu coração é obstinado? A obediência provém de Deus. Você não consegue se arrepender? Ele é exaltado nas alturas por dar-lhe o arrependimento. O arrependimento provém de Deus. Você diz: “não posso crer”? A fé provém de Deus; ela é um daqueles dons inefáveis. Mas você diz: “Tenho medo de não conseguir perseverar.” A perseverança provém de Deus. Você só precisa ser um receptor. Venha com o cântaro vazio e segure-o junto à fonte das águas; venha com o regaço vazio e receba os suprimentos preciosos; venha com uma boca faminta e seja alimentado, com lábios sedentos e seja saciado. Nada lhe é solicitado; nada lhe é pedido. Deixa de confiar em ti mesmo, ó homem, e começa a confiar em Deus. Deixa agora de fazer, de sentir e de ser; vem e confia nAquele que fez, e foi, e sentiu por você; e, então, sendo salvo, você começará a ser, a sentir e a agir, com uma nova energia, que o levará a uma nova vida. Para viver para Cristo, você precisa primeiro morrer para si mesmo. Toda esperança mortal em você deve ser aniquilada, antes que possa receber a esperança divina. Vinde, oprimidos e abatidos, quebrantados e humilhados, vinde e recebei a Cristo como o vosso tudo em tudo; e, se não podeis estender a mão por vós mesmos, como de fato não podeis ━ falo em nome do Mestre, no nome de Jesus de Nazaré: pelo poder do Seu Espírito, crede! É dever dos servos de Deus não apenas exortar, mas, com a autoridade divina, ordenar. Homem de mão atrofiada, em nome de Jesus, estende a tua mão! Tu, que nunca creste, nem te arrependeste, “Deus notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam.” Não ouviste o mandamento? Nele há poder. Desejas obedecê-Lo? Teu desejo é dom de Deus: há poder nesse desejo. Creia em Cristo, confie em Cristo, receba-O para ser seu tudo e você será salvo; seus pecados serão lavados; você será herdeiro do paraíso e se regozijará. Batei as asas, vós anjos; soai as harpas, vós serafins, vós redimidos! Mais alto, mais alto; que os acordes da melodia subam aos céus! Ó, querubins e serafins! Cantem com júbilo ao Seu nome, de quem e para quem e por quem são todas as coisas, a quem seja a glória para todo o sempre. Amém.


AOS LEITORES DO PÚLPITO DA PARK STREET
QUERIDOS IRMÃOS

O trabalho incessante tem me enfraquecido a tal ponto que sou obrigado a me afastar por algumas semanas. O grande Mestre ordenou a seus discípulos “Vinde repousar um pouco, à parte, num lugar deserto”, por isso, sinto que estaria agindo de forma contrária às advertências da Providência sobre meu estado físico e mental se não procurasse repousar. Durante minha ausência, continuarei a ministrar por intermédio dos sermões vespertinos, os quais são mais ricos e cheios de verdades doutrinárias que os matutinos. Se os sermões ministrados nos encontros mistos de Exeter Hall já são proveitosos, tenho absoluta certeza de que os sermões vespertinos para a igreja do Senhor não deixarão, pela bênção de Deus, de edificá-la ainda mais.
Espero escrever-lhes algumas linhas, as quais serão anexadas ao meu sermão semanal, a fim de que os laços de comunhão não sejam quebrados e eu tenha oportunidade de suplicar suas incessantes orações. Que o Senhor os abençoe e os guarde até a Sua volta.
Seu irmão em Cristo,
Clapham, segunda-feira, 4 de junho de 1860    
C. H. Spurgeon.
Charles Haddon Spurgeon
Enviado por Silvio Dutra Alves em 17/07/2013
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