Legado Puritano
Quando a Piedade Tinha o Poder
Textos
As Três Horas de Trevas – Parte 1
Por Charles Haddon Spurgeon.

“E desde a hora sexta houve trevas sobre toda a terra, até à hora nona. ” (Mateus 27:45).

Desde as nove da manhã até ao meio-dia, a luz do Sol iluminou com toda sua intensidade usual; de tal forma que os adversários de nosso Senhor tiveram tempo suficiente para contemplar e insultar Seus sofrimentos. Não poderia haver nenhum equivoco a respeito do fato de que Ele estava realmente cravado na cruz. Pois, Ele foi crucificado em plena luz do dia. Estamos plenamente convencidos que foi Jesus de Nazaré, já que tanto seus amigos como seus inimigos foram testemunhas oculares de Sua agonia: durante três longas horas os judeus estiveram sentados ali o contemplando na cruz, zombando de Suas misérias.
Dou graças por essas três horas de luz. Do contrário, os inimigos de nossa fé teriam questionado se verdadeiramente o corpo bendito de nosso Senhor foi cravado na cruz, e haveriam dado motivo a inumeráveis fantasias, tão abundantes como os morcegos e as corujas que rondam na escuridão. Onde estariam as testemunhas dessa solene cena se o sol estivesse oculto desde manhã até de noite? Posto que três horas de luz proporcionaram a oportunidade de que se verificasse e de que se pudesse dar testemunho do fato, vemos nisso a sabedoria que não permitiu que a luz se dissipará tão rapidamente.
Nunca percam de vista que esse milagre de fechar os olhos do dia, exatamente ao meio-dia, foi realizado por nosso Senhor em Sua debilidade. Ele havia caminhado sobre o mar, ressuscitado mortos, e sarado aos enfermos nos dias de Sua força; porem, agora, decaiu baixíssimo, tem febre, sem forças e sedento. Ele se movimenta nos limites da dissolução; no entanto, possui o poder de escurecer o sol exatamente ao meio-dia. Ele é ainda verdadeiro Deus de verdadeiro Deus.

Olhem, uma torrente púrpura derrama-se
Desde  Suas mãos e de Sua cabeça,
A maré vermelha apaga o sol;
Seus gemidos despertam os mortos.”

Se Ele pode fazer isso em Sua debilidade, o que não poderá fazer em Seu poder? Não esqueçam que esse poder foi desdobrado em uma área na que Ele usualmente não manifestou Sua força. A área de Cristo é de bondade e benevolência, e conseguintemente, de luz. Quando Ele adentra nas áreas de convocar à escuridão ou de chamar à juízo, Ele ocupa-se daquilo que Ele nomeia Sua estranha obra. As obras de Sua mão esquerda são maravilhas de terror. Somente de vez em quando que Ele faz com que o sol se oculte ao meio-dia, ou escurece a terra em dia claro (Amós 8:9).
Se nosso Senhor pôde trazer a escuridão ao morrer, que glória não poderíamos esperar agora que Ele vive para ser luz da cidade de Deus para sempre? O Cordeiro é a luz, e que luz! Os céus mostram as pistas de Seu poder agonizante, e perdem seu brilho. Por acaso os novos céus e a nova terra não darão testemunho do poder do Senhor ressuscitado? As densas trevas que rodeiam ao Cristo moribundo são as vestes do Onipotente: Ele vive outra vez, e tem todo o poder em Suas mãos, e todo esse poder o empregará para abençoar Seus eleitos.
Que chamado deve ter sido para os despreocupados filhos dos homens, esse meio-dia convertido em meia-noite! Eles não sabiam que o Filho de Deus estava em meio deles; nem que Ele estava cumprindo a redenção humana. A hora mais grandiosa de toda a história humana dava a impressão que passaria sem que se a notasse, quando, subitamente, a noite saiu apressadamente de suas habitações e usurpou o dia. Todo mundo perguntou a seu companheiro: “o que essa escuridão significa?” Os negócios foram paralisados: o arado ficou no meio do sulco e o machado não pode ser alçado. Era meio-dia, justo quando os homens encontram-se mais ocupados; porem, todos eles fizeram uma pausa geral. Não só no Calvário, mas também em todas as colinas, e em cada vale, as trevas baixaram. Houve um hiato na caravana da vida. Ninguém podia se mover exceto buscando seu caminho as apalpadas, tal como os cegos o fazem. O dono da casa pediu que a luz fosse acesa ao meio-dia, e o servente, tremendo, obedeceu essa ordem inusitada. Outras luzes também brilhavam, e Jerusalém era uma cidade submersa na noite, mas os homens não estavam em suas camas. Como a humanidade estava surpreendida! Em volta desse grandioso leito de morte conseguiu-se uma quietude apropriada. Não duvido que um gélido terror apoderou-se das massas das pessoas, e que os homens prudentes anteciparam coisas terríveis. Os que tinham permanecido ao redor da cruz, e se atreveram a insultar a majestade de Jesus, estavam paralisados de terror. Eles cessaram com sua obscenidade e deixaram de cruelmente se alegrarem. Até mesmo os mais vis deles estavam atemorizados, ainda que não convencidos – os demais “se golpeavam nos peitos.” Os que puderam, sem dúvida, foram tremulantes para suas casas trataram de se esconder, por medo dos terríveis juízos que, temiam, teriam que encarar.
Não me surpreende que existam tradições de coisas estranhas que foram ditas no silêncio dessas trevas. Esses sussurros do passado podem ou não ser verdadeiros; foram tema de controvérsia dos estudiosos, porem o esforço da disputa foi energia mal gasta. No entanto, não nos surpreenderia que alguém tenha dito, como afirmam alguns repórteres: “Deus está sofrendo ou o mundo está perecendo.” Nem irei eliminar de minhas crenças a lenda poética que afirma que o piloto egípcio de um barco, navegando rio abaixo entre seus bancos cheios de juncos, escutou uma voz que saia da sussurrante flora, dizendo: “O grandioso Pão morreu.” Em verdade, o Deus da natureza estava expirando, e coisas ainda mais ternas que os juncos da ribanceira tremeriam diante desse som.
Somos informados que essas trevas cobriram toda a terra; e Lucas diz: “sobre toda a terra.” Essa parte de nosso globo na que correspondia à noite natural, não foi afetada; porem, para todos os homens que estavam despertos, e que se encontravam em seus trabalhos, era o aviso de um grandioso e solene evento. Era estranho além de toda experiência, e todos os homens se maravilharam; pois, quando a luz devia de ter tido maior brilho, todas as coisas foram escurecidas pelo espaço de três horas.
Deve existir um grande ensino nessas trevas; pois quando nos aproximamos da cruz, que é o centro da história, cada evento está repleto de significado. Luz saltará dessas trevas. Amo sentir a solenidade das três horas de sombras de morte, assentar-me ali e meditar, sem nenhuma companhia, exceto ao Augusto Sofredor, em cujo redor desceram as trevas. Irei apresentar quatro pontos, segundo o Espírito Santo me guie. Primeiro, inclinemos nossos espíritos na presença de um milagre que nos assombra; em segundo, consideremos essas trevas como um véu que esconde; em terceiro, como um símbolo que instrui; e em quarto lugar, como um demonstração de simpatia, que nos serve de advertência pelas profecias que implica.
I. Em primeiro lugar, contemplemos essas trevas como UM MILAGRE QUE NOS ASSOMBRA. Poderia parecer uma observação de rotina o fato de que essas trevas estavam completamente fora do curso natural das coisas. Desde que o mundo começou, nunca se ouviu que em pleno meio dia, houvera tido trevas sobre toda a terra. Isso estava completamente fora da ordem da natureza. Algumas pessoas negam os milagres; e se também negam a Deus, de pronto não irei me dirigir a elas. Mas seria muito estranho que alguém que cresse em Deus, duvidasse da possibilidade dos milagres. Parece-me que, aceitando a existência de Deus, os milagres devem ser esperados como uma declaração ocasional de Sua independência e de Sua vontade ativa. Ele pode estabelecer certas regras para Suas ações, e em Sua sabedoria apegar-se a elas; mas certamente deve reservar para Si mesmo a liberdade de apartar-se de Suas próprias leis, ou do contrário, em certa medida, haveria abandonado Sua Deidade pessoal, teria deificado a lei, colocando-a acima de Si mesmo.
Não acrescentaria em nada nossa ideia da glória de Sua Deidade, se pudesse nos assegurar que Ele se fez a Si mesmo o sujeito da regra, atando Suas mãos para não atuar jamais exceto de certa maneira específica. Da auto-existência e completa liberdade da vontade que entram em nossa mesma concepção de Deus, somos levados a esperar que algumas vezes Ele não deva se apegar aos métodos que segue como Sua regra geral. Isso levou à convicção universal que os milagres são uma prova da Deidade. As obras gerais da criação e da providência são as melhores provas segundo entendo: porem, o coração geral de nossa raça, por uma razão ou outra, olha os milagres como uma evidência mais segura; demonstrando dessa forma que de Deus se espera os milagres.
Ainda que o Senhor estabeleça em Sua ordem que haja dia e noite, Ele, nesse caso, com abundante razão interpõe três horas de noite no meio do dia. Observem a razão. O inusitado na natureza inferior é levado a harmonizar-se com o inusitado nos tratos do Senhor da natureza. Certamente esse milagre era sumamente congruente com esse milagre ainda maior que estava tendo lugar na morte de Cristo. Por acaso não estava o próprio Senhor apartando-se de todas as formas normais? Não estava fazendo isso que jamais havia feito desse o principio, e que jamais seria feito novamente? Que os homens morram é algo tão comum, que é considerado inevitável. Não nos surpreende o som dos sinos dobrando nos campanários em um funeral: familiarizamo-nos com a tumba.
Conforme os companheiros de nossa juventude morrem ao nosso lado, já não somos tomados pela surpresa; pois a morte está em todo nosso derredor e dentro de nós. Porem, que o Filho de Deus morra, isso está mais alem de toda expectativa, e não só por acima da natureza, mas até mesmo contrário a ela. O que é igual a Deus, suspende numa cruz e morre. Não sei que outra coisa poderia parecer mais fora de toda regra e mais além de toda expectativa que isso. Que o sol se tenha escurecido ao meio dia é um acompanhamento adequado à morte de Jesus. Por acaso não é assim?
Mais ainda, esse milagre não somente estava fora da ordem natural, mas também é um milagre que se teria considerado impossível. Não é possível que se tenha um eclipse de sol quando há lua cheia. Quando a lua está cheia, não está em uma posição na que possa projetar sua sombra sobre a terra. A Páscoa dos judeus ocorria na lua cheia, e, portanto não era possível que houvera um eclipse solar. Esse escurecimento do sol não foi estritamente um eclipse astronômico; sem dúvida a escuridão se fez de outra forma: no entanto, para aqueles que estavam ali presentes, certamente pareceu ser um eclipse total do sol: algo impossível.
Ah irmãos! Quando tratamos com o homem, com a queda, com o pecado, com Deus, com Cristo, e com a expiação, encontramos que as impossibilidades habitam juntas como em uma casa. Temos chegado agora a uma região onde os prodígios, as maravilhas, as surpresas, são a ordem rotineira do dia: o sublime volta-se em lugar comum quando entramos no círculo do amor eterno. Sim, mas ainda; agora abandonamos a sólida terra do possível, e nos adentramos no mar, onde vemos as obras do Senhor, e Suas maravilhas nas profundezas. Quando pensamos no impossível em outras áreas, começamos a retroceder: porem, o caminho arde nas chamas do divino, e logo percebemos que “para Deus tudo é possível.” Vejam, então, na morte de Jesus, a possibilidade do impossível! Vejam como o Filho de Deus pode morrer.
Algumas vezes nos vemos obrigados a fazer uma pausa quando encontramos com uma expressão em algum hino, que implica que Deus pode sofrer ou morrer; consideramos que o poeta usou uma licença poética demasiadamente grande: no entanto, é conveniente que nos refreamos de ser hipercríticos, já que nas Santas Escrituras há palavras como essas. Inclusive lemos (Atos 20:28) sobre a “igreja do Senhor, a qual ele resgatou por seu próprio sangue.” O sangue de Deus! Ah! Não me preocupa defender a linguagem do Espírito Santo; porem, em sua presença tomo a liberdade de justificar as palavras que cantamos a poucos instantes:

“Bem faz o sol ao esconder-se nas trevas,
E ocultar todas as glórias,
Quando Deus, o poderoso Criador, morreu
Pelo homem, pelo pecado da criatura”

Não me atreverei a explicar a morte do Deus encarnado. Basta-me crer nela, e depositar minha esperança nela.
Como pode o Santo carregar com o pecado? Tampouco sei. Um homem sábio nos disse, como se fosse um axioma, que a imputação ou a não imputação do pecado é uma impossibilidade. Que pense o que quiser: já nos familiarizamos com tais coisas desde que olhamos para a cruz. Para nós, as coisas que os homens qualificam de absurdas se converteram em verdades fundamentais. A doutrina da cruz é loucura aos que se perdem. Sabemos certamente que em nosso Senhor não houve pecado, no entanto, Ele levou nossos pecados sobre Seu próprio corpo, no madeiro. Não sabemos como o inocente Filho de Deus pode sofrer por pecados que não eram seus; surpreende-nos que a justiça permita que Alguém tão perfeitamente santo seja desamparado por Seu Deus e seja levado a clamar “Eloi, Eloi, Lama Sabactani?” Porem, assim aconteceu, e tal por decreto da mais excelsa justiça; e nos alegramos por isso.  Como aconteceu com o eclipse do sol, assim Jesus fez coisas por nós, nas agonias de Sua morte, que no juízo comum dos homens, devem ser consideradas como completamente impossíveis.
Nossa fé se sente em casa na terra das maravilhas, onde os pensamentos do Senhor encontram-se tão altos sobre nossos pensamentos, assim como os céus são mais altos que a terra. Em relação a esse milagre, tenho que assinalar também que esse escurecimento do sol sobrepassou todos os eclipses ordinários e naturais. Esse durou muito mais que um eclipse ordinário, e se apresentou de uma forma diferente. Segundo Lucas, veio primeiro a escuridão sobre toda a terra, e o sol escureceu depois: as trevas não começaram com o sol, antes, se sobrepuseram ao sol. Foi único e sobrenatural. Agora, entre todas as dores, nenhuma dor é comparável a dor de Jesus: de todas as aflições, nenhuma corre paralela às aflições de nosso grandioso Substituto.
Da mesma maneira que a luz mais poderosa projeta a sombra mais profunda, assim o surpreendente amor de Jesus custou-lhe uma morte que não é a sorte comum dos homens. Outros morrem, porem esse homem é “obediente até a morte.” Outros bebem o gole fatal, no entanto, não precisam tomar nem de seu amargo nem de seu fel; Todavia, Ele “experimentou a morte.” Cada parte de Seu ser foi escurecida com essa extraordinária sombra de morte; e a escuridão natural externa foi somente para cobrir uma morte especial que eram inteiramente única.
E agora, quando penso nela, essas trevas parecem ter sido perfeitamente naturais e adequadas. Se tivéssemos que escrever a história da morte de nosso Senhor, não poderíamos omitir as trevas sem deixar de lado um elemento muito importante. As trevas parecem ser uma parte dos componentes naturais dessa grandiosa transação. Leiam toda a história e não estarão surpresos por essas trevas; depois que a mente de vocês se familiarize com o pensamento que esse é o Filho de Deus, e que Ele estende Suas mãos à cruel morte de cruz, não estarão maravilhados quando o véu do templo se rasgue; nem surpreendidos pelo terremoto ou pela ressurreição de alguns mortos. Essas coisas são coadjuvantes adequadas da paixão de nosso Senhor; as trevas também são. Desempenham seu próprio papel, e aparenta que não teriam possibilidade de ser de maneira diferente:

“Esse sacrifício! A morte Dele,
O Altíssimo e por sempre Santo!
Que os céus se apagam está muito certo,
E que se torne negro o brilho do sol.”

Reflitam por um momento. Não lhes pareceu como se a morte que essas trevas envolviam eram também uma parte natural do grandioso todo? Por fim chegamos a sentir como se a morte do Cristo de Deus fosse uma parte integral da história humana. Não se pode eliminá-la da crônica do homem; ou será que pode? Introduza a Queda, e olhe o Paraíso Perdido, e não pode completar o poema até que tenham introduzido esse Homem mais grande ainda que nos redimiu, e que por meio de Sua morte nos deu o Paraíso Restaurado. É uma característica singular de todos os verdadeiros milagres, que ainda que sua surpresa não termine nunca, jamais se percebem como anti-naturais: são maravilhosos, porem, jamais monstruosos.
Os milagres de Cristo se encaixam no curso natural da história humana: não podemos ver como o Senhor poderia estar na terra, e que Lázaro não houvesse sido ressuscitado dos mortos quando a dor de Marta e Maria fora expressa de maneira tão comovedora. Não podemos perceber como os discípulos poderiam ter sido sacudidos pela tormenta no Mar da Galileia e que o Cristo não caminhasse sobre as águas para libertá-los. Maravilhas de poder são elementos esperados em seu lugar com as circunstâncias que as rodeiam. Os milagres de Jesus, e esse das trevas entre eles, são essenciais para a história humana; e esse é de forma especial, no caso de Sua morte e essas grandes trevas que a envolveram. Todas as coisas na história humana convergem na cruz, que não parece ser para nada uma ocorrência ou um recurso posterior, mas sim o canal adequado e ordenado desde o princípio pelo qual correria o amor até alcançar o homem culpado.
Não posso dizer mais porque me falta a voz, ainda que tivesse muitas outras coisas mais a dizer. Sentem-se e permitam que as densas trevas os cubram até o ponto que nem sequer possam ver a cruz, sabendo que fora do alcance do olho mortal o Senhor fez a redenção de Seu povo. Ele fez em silêncio um milagre de paciência e amor, por meio do qual a luz veio aos que habitam nas trevas e no vale das sombras da morte.
Charles Haddon Spurgeon
Enviado por Silvio Dutra Alves em 15/08/2013
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