Legado Puritano
Quando a Piedade Tinha o Poder
Textos
Salmo 119.36 – Por Thomas Manton – Parte 2
“Inclina o meu coração para os teus testemunhos, e não à cobiça.” (Salmo 119.36).

Tradução e adaptação elaboradas pelo Pr Silvio Dutra, de citações extraídas do comentário de autoria de Thomas Manton, sobre o Salmo 119.36.


Há duas razões adicionais que inclinam o coração do homem ao que é temporal  - (1) Inclinação natural, e (2) Costume inveterado.
1. Inclinação natural. Que há uma maior propensão em nós para o mal do que para o bem está claro, não somente pela Escritura, mas pela experiência comum. Agora porque somos assim tão viciosamente dispostos? A alma que foi criada por Deus, não recebeu dele qualquer infusão de mal, porque isto não está de acordo com a santidade da sua natureza divina. Eu respondo - Apesar de a alma ter sido criada por Deus, todavia está destituída de graça ou justiça original e, sendo destituída da imagem de Deus, ou da justiça original, só pode estar envolvida com as coisas presentes e conhecidas, não tendo outra fonte de luz e princípio para guiá-la.
Agora as coisas conhecidas e as coisas presentes, elas são os prazeres do corpo, do homem exterior, riqueza, honra e tudo o que é natural. Agora, quando isto ocupa totalmente a nossa mente, nos afasta do amor e estudo das coisas sobrenaturais. É verdade que estas coisas são boas em si mesmas, mas apesar de serem naturalmente boas, elas se mostram moralmente más quando o amor dessas coisas destrói o amor de Deus, o que deve acontecer se estivermos destituídos da graça. O amor de nós mesmos e pelas coisas exteriores cresce necessariamente excessivo, quando não é guiado e dirigido pela graça.
Tire a luz do ar, e ficará escuro, e quando o sol está baixo, deve ser noite. Assim ocorre se a graça é tirada. A grande obra da graça é fazer de Deus o nosso fim e nosso bom Senhor. Agora, este fim último sendo trocado, todas as coisas devem funcionar necessariamente em desordem com o homem. Por quê? Porque o fim último é o princípio mais universal do qual todas perfeições morais dependem. Veja, como Adão e Eva, depois de terem comido o fruto proibido, perderam a imagem de Deus, e foram poluídos, assim também nós. Por quê? Será que Deus infundiu poluição e imundícia neles? ou tinha o fruto proibido tal qualidade venenosa? Não, o seu fim último foi alterado, que é o grande princípio que atravessa todas as nossas ações, e quando o nosso fim é alterado, então tudo fica em desordem. Eles caíram de  Deus, com inveja, falsidade, e desejando o mal para eles, e por instigação do diabo viraram-se para a criação para encontrar a felicidade nela, contra a vontade e ordem expressa de Deus. Assim como o primeiro homem foi completamente pervertido, assim estão todos os homens também totalmente pervertidos, pois o pecado ainda consiste numa conversão de Deus para a criatura, Jer 2.13, 2 Tim 3.4.
Pela troca do nosso fim último toda a bondade moral está perdida, pois todos os meios estão subordinados ao fim último, e são determinados por ele. Agora necessariamente isto estará sem a graça; haverá uma conversão do homem para a criatura e para o corpo, com as conveniências e confortos dos mesmos, o interesse e tudo o que concerne ao corpo será seguido em vez de Deus. Porque quando a alma desce do mundo superior, logo se esquece de sua origem divina, e por estar no corpo, ela se conforma com o corpo, e apenas adere a objetos visíveis e corporais. Como a água, que sendo colocada em um recipiente quadrado, tem uma forma quadrada, em um vaso redondo, tem uma forma redonda, de modo que a alma, sendo infundida no corpo, é liderada por ele, e acomoda todas as suas faculdades e operações para o bem-estar do corpo. E daí vem a nossa ignorância e aversão da alma à santidade, o desregramento de apetite, e inclinação para as coisas sensuais. Em suma, sem a graça, a mente de um homem se precipita às vaidades mundanas. Como a água corre, onde ela encontra uma passagem, por isso a alma do homem, sendo destituída da imagem de Deus, encontra uma passagem para as coisas temporais, e assim funciona dessa maneira.
2. Assim como o homem está, portanto, corrompido e propenso a objetos mundanos por inclinação natural, assim também, pelo costume inveterado.
Assim que nascemos, o nosso apetite sensual, e os primeiros anos da vida do homem são apenas regidos pelos sentidos; e os próprios prazeres são nascidos e criados conosco, e profundamente gravados na nossa natureza; e pela constante vivência no mundo, conversando com objetos corpóreos, a mancha vai crescendo em nós, e por isso estamos mais profundamente pintados e confirmados num quadro mundano, e vivemos em busca de honra, ganho e prazer, de acordo com o temperamento particular de nossos corpos e curso de nossos interesses que atuam em nossas deliberações: Jer 13.23, "Pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas? então podereis também vós fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal." O costume é como uma outra natureza. Nós a achamos pela experiência, quanto mais estamos acostumados a qualquer curso de vida, mais nos deleitamos nele, e somos desmamados dele com uma dificuldade muito grande. Todo ato dispõe a alma ao hábito, e depois que o hábito ou costume é produzido, então cada novo ato deliberado acrescenta uma rigidez ou influência duplicada na faculdade em que o costume está assentado; e quanto mais tempo este mau costume continuar mais facilmente somos levados com as tentações que a ele se ajustam, e mais dificilmente somos influenciados pelo que lhe seja contrário. Agora, esta rigidez de vontade num curso carnal é o que a Escritura chama de dureza de coração e um coração de pedra, porque um homem é seduzido por esses costumes, e de todos os costumes, a cobiça ou o mundanismo é o mais perigoso. Por quê? Porque este é um pecado de mais crédito e de menos infâmia no mundo, e isso vai multiplicar ainda mais seus atos na alma, e operará incessantemente: "têm o coração exercitado na avareza," 2 Pedro 2.14.
Bem, então, essas paixões (cobiças) sendo nascidas e criadas conosco desde a nossa infância, se estabelecem como uma regra. A fé em Cristo, que vem depois, e nos encontra tendenciosos e predispostos a outras inclinações, que, em razão do uso prolongado não são facilmente quebradas e lançadas fora; assim como nas tentações, às quais seremos chamados, ou que começaremos a nos aplicar nos caminhos da vida, estaremos facilmente sensíveis quanto a esta rigidez do coração e obstinação que nos conduzem por um outro caminho.
Em terceiro lugar, o coração estando, portanto, profundamente comprometido com as coisas temporais, ou coisas terrenas, não pode ser guiado por aquilo que é espiritual e celestial, pois Davi propõe essas coisas aqui como sendo inconsistentes, “para os teus testemunhos Senhor, e não para a cobiça.”. Se o coração estiver viciado em coisas mundanas, estará necessariamente avesso a Deus e aos seus testemunhos, pois a tendência habitual do coração para qualquer pecado é incompatível com a graça ou a obediência completa à vontade de Deus. Aquilo para o que o coração estiver inclinado terá o seu trono. Agora, quando indagamos pela graça; temos ou não a graça? tenho a obra de Deus em meu coração? a questão não é o que há de Deus no coração, mas se Deus tem o trono. Algo de Deus está no coração do homem mais perverso que existe, e algo do pecado no melhor coração que existe; por isso qual caminho é a tendência, a inclinação habitual e predominante da alma? Quem que tem o domínio? “Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da graça.”  Rom 6.14. O que tem a prevalência do coração? Embora a consciência tome partido de Deus, como pode tomar fortemente em um homem mau, ainda qual é o caminho para o qual se inclinam as nossas almas? E, assim como todo pecado, em seu reinado é inconsistente com a graça, assim muito mais são as afeições mundanas: Mat 6.24, "Ninguém pode servir a dois senhores".
Você não pode estar inclinado a Deus e ao dinheiro: 1 João 2.15: "Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele."
Em quarto lugar, este quadro de coração não pode ser alterado até ser mudado pela graça de Deus. Por quê? Porque não há qualquer princípio remanescente em nós, que possa alterar este quadro, ou nos tornar insatisfeitos com nosso estado presente, assim como para cuidar de outras coisas, que possam quebrar a força de nossas inclinações naturais e habituais. Há três coisas que se posicionam contra a mudança do coração para Deus.
1. Há a nossa natureza, que nos leva totalmente a favor da carne, e desordenadamente para buscar o bem do corpo. Agora, a natureza não pode subir mais alto do que si mesma, e se aplicar a coisas que estão acima de sua esfera; como a água, que não pode subir mais alto do que a sua fonte. Nossas ações não podem exceder o seu princípio, que é o amor próprio. Mas, além disso,
2. Há o costume adicionado à natureza, que a torna mais endurecida e obstinada; de modo que se pode supor que a consciência é sensível de nosso erro e escolha errada, e algumas considerações de peso devem ser propostas para nós, pois é fácil mostrar que as coisas eternas são muito melhores do que as coisas temporais, e as coisas espirituais do que as carnais - se a consciência, eu digo, deve entrar, e representar o estado doentio no qual nos encontramos, e ainda, porque a postura de nossos corações nos conduz habitualmente de outro modo, estamos não inclinados a Deus ou ao que concerne à vida eterna; porque não será o mero argumento que fará isto.
Com toda a razão um bem menor não deve ser preferido a um maior; e os prazeres mundanos, que não são apenas inferiores e turvos, mas também passageiros, e que dão ocasião a muitos males para nós, estes não devem ser preferidos antes que a felicidade eterna. Mas aqui reside a nossa miséria, embora os prazeres que nos afetam sejam de menor valor em si mesmos, mas a nossa propensão habitual e inclinação habitual para eles é maior.
3. Há a maldição de Deus, ou duras penas. Porque assim como a natureza cresce em costume, pelos nossos pecados costumeiros Deus é provocado, e retira essas influências comuns da graça pelas quais nossa condição poderia ser melhorada, e na aplicação da Sua justiça ele deixa os nossos corações entregues a si mesmos; Oseias 4.17, "Efraim está entregue aos seus ídolos, deixa-o”, Sl 81.12, “Assim, deixei-o andar na teimosia do seu coração; siga os seus próprios conselhos.” Assim deixamos de ter  aqueles avisos frequentes e dores de consciência, e os bons pensamentos como antes. "Deixe-o sozinho"; a Providência o deixou só, a consciência, o deixou sozinho, e o pecador é deixado à sua própria vontade. Portanto, de todo o trabalho o que restou foi ser deixado sozinho por Deus, o único que tem poder para perdoar, e para curar a têmpera de nossos corações, ele tem autoridade para tirar essa dura sentença judicial que como um juízo pode continuar sobre nós, e em razão do que os santos se  expressam com estas palavras: "Inclina o meu coração para os teus testemunhos,". E vemos assim que Deus tem poder para tirar a dureza natural e habitual que está em nós: "Porque o coração do homem está na sua mão, como os rios de água", Prov 21.1, e pode tão facilmente nos chamar para o bem, assim como a água segue o curso que foi cavado para ela.
Davi diz aqui: “Senhor, incline o meu coração”, e em 1 Reis 8.58: " a fim de que a si incline o nosso coração, para andarmos em todos os seus caminhos e guardarmos os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, que ordenou a nossos pais." Somente a operação de Deus pode dobrar a vara torta para o outro lado. Mas você vai dizer que este trabalho às vezes é atribuído ao homem, por exemplo, no verso 112 deste salmo: “Eu inclinei o meu coração para guardar os teus estatutos, para sempre, até o fim”, e Josué 24.23 “Inclinai o vosso coração ao Senhor Deus de Israel."
Eu respondo - Estas passagens apenas enfocam a nossa operação subordinada, ou o movimento voluntário e resoluto de nossa parte. Quando Deus nos dobrar e inclinar para fazer a sua vontade, quando Deus colocar o nosso amor para agir, e nos posicionar no que é espiritual e bom, então vamos nos inclinar, e dobrar nossos corações desta maneira. De modo que todas essas expressões não implicam uma cooperação, mas a operação subordinada por parte do homem.
(Há um dito popular não bíblico: “faça a tua parte que Deus fará a dele”. Nossa parte é permitir sermos dobrados e movidos por Ele, e não fazer algo específico e diferente do que Ele faz. Nossa parte é crer e obedecer, conforme somos capacitados pela graça – nota do tradutor)
Em quinto lugar, nesta mudança há um enfraquecimento da antiga inclinação para as vaidades carnais, e há um novo pendor de coração derramado sobre nós. O coração é retirado do amor aos objetos terrenos, e então é fixado naquilo que é bom e eterno: Deut 30.6: "O SENHOR, teu Deus, circuncidará o teu coração e o coração de tua descendência, para amares o SENHOR, teu Deus, de todo o coração e de toda a tua alma, para que vivas.”. Em primeiro lugar, há uma circuncisão, a poda da carnalidade do coração e, depois, um amor sincero a Deus. Assim lemos em Ezequiel 36.26,27, “tirarei o coração de pedra da vossa carne, e porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos.” Primeiro, a indocilidade da vontade e dos afetos é removida e, em seguida, um coração nos é dado, que é  capacitado e maleável para os propósitos da graça. Primeiro, as ervas daninhas são arrancadas, então é plantada em nós a santa semente. Ou então nós “tiramos o velho”, e então “colocamos o novo”, Ef 4.22,23. A corrupção inata natural, que diariamente cresce cada vez pior, é cada vez mais removida, assim com nos despimos da roupa velha para vestirmos a nova.
Em sexto lugar, quando nossos corações são assim mudados, eles estão sempre prontos para retornarem às suas antigas inclinações. Porque Davi, sendo um homem renovado,  falou assim com Deus: "Ó Senhor, incline o meu coração para os teus testemunhos, e não para a cobiça." Ele viu o seu coração se entortando novamente, e sendo sensível à infecção, recorreu a Deus. A inclinação que há neles para o mal não está tão perdida para o melhor dos filhos de Deus, e ela retornará, a menos que Deus ainda nos atraia a Si. A esposa de Cristo, aqueles que já se encontram em comunhão com ele, dizem: "Atrai-me”. Este não é um trabalho para ser feito uma única vez e não mais, mas deve ser renovado muitas vezes e repetido na alma, pois existem alguns resquícios de nossa aversão natural, para com Deus, e inimizade para com o jugo da sua palavra, ainda deixados no coração: Gál 5.17, "a carne luta contra o espírito”. Existem dois princípios ativos dentro de nós, e eles estão sempre em guerra um contra o outro. Portanto, há necessidade não somente de estarmos inclinados em primeiro lugar, e atraídos para Deus, mas temos de ir a ele de novo e de novo, e orar a ele diariamente para que ele continue mantendo a tendência de nossos corações na retidão, e enfraqueça as afeições carnais.

Thomas Manton
Enviado por Silvio Dutra Alves em 03/10/2013
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