O Martírio de Hugh Latimer
No ano de 1539, Gardiner e outros eclesiásticos romanistas ganharam uma influência considerável sobre a mente do rei, e o ato de seis artigos foi aprovado, que restaurou alguns dos pontos principais do papado. Em razão disso Latimer renunciou ao seu bispado, e com muita alegria voltou à vida privada; no entanto, foi conduzido à Torre por instigação do bispo Gardiner, e embora o rei não permitisse a seus inimigos darem contra ele em toda a extensão que desejassem, ele foi mantido prisioneiro durante os seis anos restantes daquele reinado.
Com a ascensão de Eduardo VI, Latimer foi libertado. Ele foi pressionado a reassumir seu bispado, mas recusou mais uma vez o encargo, por conta de sua idade e enfermidades que, no entanto, não o impediram de prosseguir com diligência os seus estudos, e para este propósito era seu costume levantar-se às duas horas da madrugada. Ele também sempre pregou o evangelho, tanto na corte e em várias partes do país.
Sua residência principal durante este período foi a Cranmer Lambeth, onde muitos vieram ter com ele para aconselhamento quanto aos seus sofrimentos e erros de natureza temporal, bem como para aconselhamento espiritual.
Um exemplo notável disto temos no caso de John Bradford, que, em suas cartas ao Padre Traves, repetidamente, mencionava ter recorrido a Latimer em busca de conselho, e isto foi citado também por ele em um de seus sermões perante o rei e a corte.
"Eu não posso me dedicar ao meu livro", disse ele, "porque pessoas pobres vêm a mim, para falar a respeito de seus problemas." O estado deplorável da administração da justiça naqueles tempos, é muitas vezes severamente advertida em seus sermões.
Fox o historiador dos mártires da igreja cristã, descreve, da seguinte forma, os trabalhos de Latimer durante este reinado:
"Assim como a diligência deste homem de Deus nunca cessou, durante todo o tempo do Rei Eduardo, para o lucro da igreja, tanto publica quanto privadamente, assim, entre outras ações em que ele foi observado, isto não pode deixar de ser considerado, mas é digno de ser observado, porque Deus não somente lhe deu o seu Espírito de forma plena e consoladora para pregar a sua palavra à sua igreja, mas também pelo mesmo Espírito ele mostrou de forma evidente e profetizou acerca de todos os tipos de pragas que aconteceriam depois. E, no tocante a si mesmo, ele sempre afirmou que a pregação do evangelho custaria a sua vida, para o que ele alegremente se preparou, e se sentiu certamente convencido de que Winchester (bispo Gardiner) foi mantido na Torre por este motivo, como o caso também verdadeiramente provou."
Quando a rainha Maria, a sanguinária, subiu ao trono, Latimer foi ao bairro de Coventry, e o concílio enviou uma citação para que ele comparecesse diante deles. O objetivo daquela intimação era evidente, e John Careless, um tecelão protestante daquela cidade, que depois morreu na prisão por causa da verdade do evangelho, apressou-se em informar a Latimer sobre a aproximação do oficial. O venerável mártir, foi assim, avisado com seis horas de antecedência, durante as quais ele poderia ter escapado, e mesmo depois, ele teve ainda mais oportunidades, porque o oficial somente deixou a citação e foi embora, sem fazer qualquer contato com a pessoa de Latimer. É provável que os conselheiros da rainha, tivessem desejado conduzir o velho Latimer à rainha, do que exibi-lo ao povo como um sofredor pela verdade.
Como Fox observa: "Eles sabiam muito bem que a sua constância e firmeza o levariam ao papado, e que confirmaria a santidade na verdade."
Mas Latimer sentiu que, depois do público e decidido testemunho que ele havia dado das verdades do evangelho, que era seu dever não se encolher e fugir do sofrimento por causa delas, e sua idade e enfermidades não lhe davam oportunidade de servir o seu Senhor e Mestre em qualquer outra forma que fosse provavelmente tão rentável para as almas dos outros.
Ele estava plenamente consciente do destino preparado para ele, e como ele passou por Smithfield, em sua chegada a Londres, ele disse:
"Aquele lugar há muito tempo gemia por mim", à espera de ser conduzido às chamas onde tantos haviam sido queimados em anos anteriores. Com a mesma constância e alegria de espírito, quando novamente preso na Torre, e quando chegava o inverno, disse ao tenente, que "a menos que eles permitissem que ele fosse queimado, ele iria decepcioná-los, porque eles tinham intentado fazer dele um miserável ardendo no fogo, mas ele deveria morrer de frio."
Como o número de presos aumentou, Cranmer, Ridley e Bradford foram confinados na mesma cela com Latimer.
Em abril de 1554, os três bispos foram removidos para Oxford, onde eles foram designados para argumentarem em público contra o sacramento.
Um relato completo do que se passou foi elaborado pelo bispo Ridley.
Quando os romanistas pressionavam com suas distinções acadêmicas e argumentos dos padres sobre Latimer, ele imediatamente lhes disse que tais alegações não tinham nenhum efeito sobre ele, que os padres muitas vezes foram enganados, e ele não via nenhuma razão para depender deles, exceto quando eles dependiam da Escritura. Depois destas disputas, Cranmer, Ridley e Latimer foram condenados, e mantidos na prisão por muitos meses, tempo durante o qual se ocuparam em conferências sobre assuntos religiosos, em fervorosa oração, ou por escrito, para a instrução e apoio de seus irmãos. Fox diz: "Latimer, por razão da debilidade de sua idade, foi o que menos escreveu de todos eles neste último momento de sua prisão; ainda em oração, ele estava fervorosamente ocupado, onde, muitas vezes, ele continuou assim por muito tempo de joelhos, porque ele não era capaz de se levantar sem ajuda." Os principais assuntos de suas orações estão relacionados por Fox, e foram como se segue:
“Em primeiro lugar, que, assim como Deus lhe havia designado para ser um pregador de sua palavra, assim também ele lhe daria graça para sustentar a sua doutrina até a sua morte, e ele poderia dar o sangue de seu coração para isto. Em segundo lugar, para que Deus por sua misericórdia restaurasse o evangelho novamente na Inglaterra, e acrescentou estas palavras, "mais uma vez , uma vez novamente," ele fez isso repetidamente como se tivesse visto a Deus diante dele, e falado face a face com ele. Em terceiro lugar orou para a preservação da majestade da rainha, que agora era a Rainha Elizabeth, de quem em suas orações ele estava acostumado a citar, e por quem pedia a Deus sinceramente que pudesse ser feita um conforto para a o reino da Inglaterra." Estas eram orações de fé e, como tal, não foram oferecidas em vão.
No dia 30 de setembro de 1555, Ridley e Latimer foram perante os comissários nomeados pelo papa examiná-los e condená-los. A aparição de Latimer é assim descrita: "Ele segurava o chapéu na mão, tendo um lenço na sua cabeça, e sobre ele um boné, e uma grande capa, como era comum o uso dos citadinos.”
Na manhã do dia 16 de outubro de 1555, Latimer e Ridley foram levados para o local preparado para a sua queima, na parte da frente do Baliol College, em Oxford. Eles se ajoelharam e oraram separadamente, e depois conversaram juntos. Um sermão foi pregado em seguida, em que suas doutrinas e seus caracteres foram difamados, mas eles foram impedidos de responder. "Bem", disse Latimer, "não há nada escondido, mas isto será aberto."
O carcereiro, em seguida, tirou as roupas superiores, para prepará-los para a estaca, quando foi visto que Latimer tinha colocado uma mortalha como roupa de baixo, e, embora ele tivesse a aparência de um velho enrugado, e seu corpo curvado sob o peso do anos, ele agora "ficou de pé, como um pai gracioso e com um poder que qualquer um poderia contemplar."
Tudo estava preparado, uma tocha acesa foi trazida e colocada aos pés de Ridley. Latimer, então, se virou e se dirigiu aos seu companheiros de sofrimento, com estas palavras memoráveis e enfáticas: "Tende bom conforto, Mestre Ridley, e seja homem; nós seremos neste dia como uma vela, pela graça de Deus, na Inglaterra, assim como eu creio que jamais se apagará.” O fogo queimava ferozmente; Ridley sofreu muito com grande firmeza e constância, mas Latimer foi logo entregue. Ele exclamou em voz alta : "Ó Pai do céu, recebe a minha alma." Curvado sob as chamas ele parecia abraçá-las, e banhava as mãos nelas, e rapidamente partiu. Quando o fogo queimava baixo, e os espectadores lotavam em volta das brasas mortais, eles viram que o seu coração não fora consumido, e uma quantidade de sangue jorrou dele, lhes lembrando da sua oração já mencionada. Ele tinha realmente derramado o sangue do seu coração como um testemunho da verdade das doutrinas que ele havia pregado.
Este terrível testemunho da verdade não foi inútil. Julius Palmer, um companheiro do Magdalen College, estava presente, ele tinha sido um papista fanático, mas sua mente estava animada para examinar as doutrinas sustentadas por aqueles que sofreram o martírio, para que pudesse verificar o que lhes permitiu passar por tão cruéis tormentos impassivelmente. Ele esteve presente nos exames e na queima de Ridley e Latimer, e a firmeza cristã deles foi o meio de dissipar seus preconceitos. Ele mesmo, pouco depois, sofreu por causa da verdade, mas tinha sido ensinado a calcular o custo, e antes da hora do sofrimento chegar, ele declarou:
"Na verdade, é uma questão difícil para eles queimarem aquilo que está ligado na mente, na alma e no corpo, assim como o pé do ladrão é amarrado em um par de grilhões; mas se um homem é capaz, pela ajuda do Espírito de Deus, de separar e dividir a alma do corpo, porque para ele não é mais difícil queimar, do que para mim, o ato de comer este pedaço de pão." Há também uma razão para crermos que os sofrimentos de Latimer e Ridley, e de outros mártires, foram úteis para pelo menos um dos eclesiásticos espanhóis que estavam naquele tempo na Inglaterra.
A característica distintiva de Latimer era a sinceridade, ou zelo fiel à verdade; - em um seguidor de Cristo estas qualidades são inseparáveis. Elas foram especialmente apresentadas nos seus sermões, e a atenção de seus ouvintes foi fixada pelo animado estilo alegre em que ele entregou as verdades do evangelho, e pela reprovação das más práticas dos homens. Quando pregava, frequentemente apresentava histórias e depoimentos detalhados, numa forma que parece singular em um pregador moderno; mas isso é para ser contabilizado pelos costumes dos tempos em que viveu, e sua ansiedade para se valer das oportunidades de utilidade tão peculiarmente apresentada por ele. Muitas destas ilustrações parecem duras aos ouvidos modernos, mas eram bem adequadas para fazer uma boa impressão sobre as mentes quase totalmente não familiarizadas com as Escrituras, e essa ignorância era tão geral, naqueles dias, que era suficientemente responsável por seu excepcional detalhamento dos acontecimentos da história sagrada.
A pregação de Latimer foi assim descrita: "O método e curso de sua doutrina era, para definir a lei de Moisés diante dos olhos das pessoas em todas as severidades e maldições que, assim, as colocava em temor de pecar, e para colocar por terra a confiança deles em suas próprias realizações, e, assim, levá-los a Cristo, convencendo-lhes da sua necessidade dele, e de fugirem para ele por meio da fé evangélica. Ele falou contra a opinião de obtenção de perdão do pecado e salvação, através de cerimônias religiosas. Ele ensinou, pelo contrário, que somente Cristo foi o autor da salvação, e que ele, por uma só oblação de seu corpo, santificou para sempre todos aqueles que acreditam nele - que era a chave de Davi, e que ele abria, e ninguém podia fechar, e que aquilo que ele fechou, ninguém podia abrir. Ele pregou que Deus amou o mundo, e o amou entregando o seu Filho único para ser morto, para que todos os que daí em diante acreditarem nele não pereçam, mas tenham a vida eterna; que ele foi um propiciação por nossos pecados e, portanto, somente sobre ele devemos lançar toda a nossa esperança, e que, embora, os homens estivessem carregados de pecados, eles nunca pereceriam por causa dAquele que não conheceu o pecado, e que nenhum deles deixaria de crer nele." Estes foram os tons espirituais contidos nos sermões de Latimer, e este é o relato do homem culto, Sir R. Morryson, que viveu naqueles dias, e afirma: "Jamais alguém floresceu, eu digo, não somente na Inglaterra, mas em qualquer país do mundo, desde os apóstolos, que tenha pregado o evangelho mais sincera, pura e honestamente do que Hugh Latimer, bispo de Worcester.”
Nota do tradutor: nosso principal objetivo com este breve relato do testemunho de um mártir do evangelho não é o de reacender o sentimento abominável e reprovável que vingou muito em dias passados em ressentimentos mútuos, por motivo de disputas religiosas, mas deixar registrado que quando se ama a Cristo e o evangelho isto é feito acima do amor que temos por nossa própria segurança e vida, conforme ficou patentemente demonstrado no testemunho de Hugh Latimer.
Apocalipse 12.11: “Eles, pois, o venceram por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida.”
Silvio Dutra Alves
Enviado por Silvio Dutra Alves em 17/10/2013