Legado Puritano
Quando a Piedade Tinha o Poder
Textos
Pilatos e Nós, Culpados da Morte do Salvador – Parte 3
Por Charles Haddon Spurgeon

IV. Tenho poucos minutos para dedicar  a cada ponto; assim que devo falar agora de outro pecado do qual muitas pessoas são culpadas, ou seja, O PECADO DA INDIFERENÇA EM RELAÇÃO AOS SOFRIMENTOS DE NOSSO SENHOR. Pilatos pensou que tinha outra opção para deixar que o prisioneiro se fosse, e a ensaiou. Açoitou a Jesus. Não direi a vocês quão terríveis eram os açoites dos romanos. Não poderia igualar-se a nada com exceção do knut dos russos[4]. Era a mais terrível das torturas. Muitos morriam ao serem açoitados,  e quase todas as vítimas desmaiavam depois de uns quantos açoites: em consequência deles o corpo humano era reduzido a uma massa de carne machucada, sanguinolenta e abalada. Quando o Salvador era todo uma massa de feridas e machucados, Pilatos o apresentou à multidão, dizendo: “Eis aqui o homem”, apelando a algum traço de humanidade que esperava que os principais sacerdotes e anciãos porventura tivessem. “Eis aqui o homem!”, disse. “Acaso isso não é suficiente? Está esmagado e golpeado e sangrando por todas as partes, e isso não é suficiente?”, mas eles não sentiam absolutamente nada por Ele, e só gritavam: “Morra!” Se o espetáculo de dor que apresentava nosso Senhor nesta ocasião não te comove, é uma prova lamentável da dureza de teu coração. Acaso não há muitos que leem a história de Seus sofrimentos sem emoção?
Desprezado, injuriado, coroado de espinhos e açoitado, nosso Senhor se destaca como o Varão de Dores, como o Monarca de misérias. Agonias incomparáveis! Dores únicas e inigualáveis! Acaso não derramarás lágrimas por Aquele de quem os soldados zombaram e a quem os judeus ridicularizaram? Não? Acaso é possível que respondas: “Não”? Acaso escutaste a história tantas vezes que já tem menos efeito que um conto ocioso? Que vergonha! Que vergonha!  E o pior de tudo é que não afete os homens quando recordem que estas dores foram suportadas voluntariamente por amor, e não por necessidade nem por nenhum outro motivo egoísta. Suas dores foram suportadas por causa de Seus inimigos. Ele ordenou a Seus discípulos que começassem a pregar em Jerusalém para que os homens que cuspiram em Seu rosto soubessem que podiam contar com Sua compaixão, e que Ele havia provado a morte por aquele que transpassou seu coração. Ele morre orando por Seus assassinos. Como é possível que seja assim! Que um homem morra por seu amigo, é algo nobre e admirável; mas que um homem morra por aqueles que lhe tiram a vida é o espetáculo mais extraordinário que os anjos jamais podem contemplar.
Temos que considerar isto também, que toca da maneira mais terna aos crentes: nosso Senhor sofreu assim por nós. Em Sua morte está nossa esperança, pois do contrário estaríamos perdidos para sempre. Se não tivéssemos parte e porção nos méritos da agonia, então não teríamos nenhuma esperança, a não ser aguardar com terror o juízo e a feroz indignação. Acaso não nos lamentamos quando vemos Jesus agonizando? Oh sentimento, tu me abandonaste e te realizaste nas bestas, e os homens perderam a razão. Certamente nossos corações serão como a rocha em Horebe. Golpeadas pela vara da cruz, de nossas almas correrão rios de dor penitencial. Mas nisto há uma maravilhosa prova de nossa culpa: temos compaixão por qualquer pessoa exceto pelo Salvador; podemos chorar por nosso cachorrinho de estimação, e contudo podemos ouvir sobre os sofrimentos de Cristo com absoluta indiferença. Existem multidões de pessoas deste tipo, e rogo ao Espírito de Deus que toque suas consciências sobre este assunto da frieza a Jesus.
Mas devo apressar-me, ainda que quisesse deter-me um pouco mais, deixando a ampliação destas acusações para suas meditações.

V. Há outro crime do qual muitos são culpados, que foi cometido pelo próprio Pilatos, e esse foi o crime  DA COVARDIA. Não menos de três vezes, Pilatos disse de nosso Senhor: “Não acho culpa alguma neste homem”, contudo não O soltou. Ele mesmo reconheceu: “Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar,” e, contudo, não exerceu a autoridade para soltá-lo. Por covardia não se atreveu a soltar seu prisioneiro, perfeitamente inocente. Ele sabia, mas não agiu com base em seu conhecimento. Acaso tenho pessoas diante de mim cujo conhecimento supera em muito a prática? Isto, na verdade, será um dos vermes do inferno que nunca morrem: o remorso de uma consciência instruída e negligente. Sobre a porta de sua prisão, os condenados lerão esta inscrição: você conhecia seu dever, mas não o cumpriu. O conhecimento que faz responsáveis aos homens por seus atos aumenta a responsabilidade na medida em que aumenta o conhecimento, e com ele aumenta sua culpa e seu castigo.
Além disso, Pilatos não somente conhecia seu dever, ele queria cumpri-lo à sua maneira. Podemos quase sentir pena desse covarde vacilante. Vejam como luta para soltar a Jesus de alguma maneira indireta que não lhe custe nada. Ele deseja, decide e logo volta  atrás. Como um barco sacudido por ventos contrários, em um momento quase se encontra em porto seguro mas subitamente é lançado mar adentro.
Oh, a quantidade de desejos sem realizar que alguém poderia recolher neste Tabernáculo, da maneira como os homens recolhem as frutas maduras que o vento lança das árvores. Os homens desejam arrepender-se, desejam crer, querem decidir, desejam ser santos, desejam ter a paz de Deus; mas seus desejos não os levam a uma decisão prática, é assim perecem no umbral da misericórdia. Sua bondade termina em desejos vãos, que não fazem nada mais que evidenciar sua responsabilidade, e desta maneira asseguram sua condenação. Contudo, para ser justos, devemos admitir que Pilatos fez algo mais que desejar; ele falou a favor de Cristo. Mas tendo falado em favor de Jesus, não procedeu à ação, como estava obrigado a fazê-lo. É possível que um homem diga com sua língua: “não acho culpa alguma neste homem,” e que em seguida, por meio de suas ações condene a Jesus entregando-o à morte. As palavras são uma pobre homenagem para o  Salvador.  Ele não salva a humanidade com palavras, e não deve ser retribuído da boca para fora.
Pilatos foi suficientemente arrojado ao falar, mas em seguida se retraiu diante dos clamores da multidão; e, contudo, Pilatos podia ser firme algumas vezes. Quando Jesus foi cravado na cruz, os sacerdotes rogaram a Pilatos que mudasse a acusação que estava escrita sobre Sua cabeça, e Pilatos não cedeu, mas replicou: “O que escrevi, escrevi”. Por que  não demonstrou um pouco de firmeza quando Jesus ainda estava vivo? Pilatos não era um ser completamente frágil e afeminado como para que fosse incapaz de fazer pé firme; se o fez uma vez, podia ter feito antes, e assim poderia ter se salvado de cometer tamanha transgressão. Não há Pilatos aqui, pessoas que poderiam  ter sido cristãs se houvessem possuído suficiente valentia moral? Algum companheiro louco zombaria deles se houvessem se transformado em pessoas religiosas, e isto eles não podiam suportar. Pobres covardes!
Outro dia escutei a história de um jovem que não se atreveu a orar em um quarto onde dormiam mais dois ou três sujeitos; e assim, como um pusilânime, se meteu em sua cama e sucumbiu ao medo do que diriam. Meu medo é saber que há homens que preferem ser condenados a sofrer zombaria. Outra pessoa tem um companheiro perverso, e sabe que deve terminar esta amizade se converte em um seguidor de Jesus: ele gostaria de fazê-lo, mas carece de valentia. Oh, tu, que recusas tudo o que implica servir a Cristo, por medo do que dirão, por acaso não sabes qual é a porção dos medrosos? Oh, vocês que são tão temerosos, como é possível que Jesus esteja coberto de chagas e vergonhas por vocês, e que vocês tenham vergonha Dele? A morte se aproxima velozmente a Ele, e vocês, ainda escondem seu rosto Dele? Na verdade, isto é crueldade, tanto com Cristo como com vocês mesmos. Não podem separar-se de seus inimigos? “Por isso saí do meio deles, e apartai-vos, diz o Senhor; E não toqueis nada imundo,”  Não abraçarás Sua causa? “Se alguém me serve, siga-me.”
Mediante esta covardia faz tudo o que está a teu alcance para tirar a vida de Cristo. “Como?”, perguntarás. Bem, suponha que todo mundo agisse como você, haveria cristianismo no mundo? Se todo mundo fosse covarde, haveria alguma igreja na terra? Por acaso não está assassinando a Cristo e está enterrando a Cristo, na medida de suas possibilidades? Não está destruindo Sua influência e debilitando Sua igreja quando se recusa a reconhecê-lo? Por acaso não é assim? Pensa nisso. Está rejeitando influenciar de alguma forma ao mundo, a favor de Jesus. Ainda que haja multidões muito ativas em desprezar a Jesus e em se opor a Ele, você não estende uma mão por Ele. Por que não sai e diz: “eu estou de Seu lado”? Por sua suposta neutralidade age como inimigo. Inimigo Dele. Você deve estar de um lado ou do outro, agora que escutou o Evangelho, pois Jesus disse: “Quem não é comigo, é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha.” Você está contra Ele, e está espalhando. Suponha que outros sigam seu exemplo. “Bem,” dirás, “não há nada mau no meu exemplo, exceto que não sou cristão.” Precisamente por isso, já que sob alguns aspectos, este seu exemplo o converte em um agente com mais poder para o mal.
Eu não creio que o exemplo de um bêbado reconhecido possa influenciar aos jovens para que se entreguem à bebedeira; ao contrário, muitos são advertidos pelo deplorável espetáculo, e fogem e se entregam a uma total abstinência pelas dúvidas. Com frequência recebo jovens de ambos os sexos como membros desta igreja que são totalmente abstêmios, devido a que a bebedeira do pai fez com que os filhos fossem tão desgraçados, e seu lar tão pobre, que passaram a abominar esse vício maldito. Vejam, então, como um mau exemplo, se praticado excessivamente, pode perder seu poder maligno.
Seu caso é diferente; seu exemplo é, em alguns sentidos, admirável, e logo joga ao lado do diabo. Quanto melhor for, mais dano estará causando ao colocar-se ao lado do mal. Na medida em que é um ser moral, excelente e amigável, é precisamente o homem cuja influência Cristo deve ter a Seu lado, e se você é a causa para que ajam contra Ele, o fato é ainda mais deplorável. Se o peso de seu caráter motiva os homens a ignorar as exigências do Filho de Deus,  que é isto senão tramar espiritualmente a morte de Jesus?
Por último, e, oh, que o Espírito de Deus abençoe este amargo remédio quando seja aplicado ao coração, para que sintas as dores da penitência no dia de hoje: está o pecado da HIPOCRISIA BASEADA NA JUSTIÇA PROPRIA. Pilatos cometeu plenamente esse pecado. Tomou água e lavou as mãos, dizendo: “Estou inocente do sangue desse justo; considerai isto.” Que contradição! Ele é inocente, mas lhes dá a permissão para ser culpados. Eles não podiam assassinar ao Senhor sem sua autorização; ele outorga a permissão necessária, e contudo, diz: “Inocente sou.” Acaso não vejo a um indivíduo da mesma laia por ali? Esse indivíduo diz: “eu não desprezo a Cristo, nem falo palavra alguma contra Ele. Sou perfeitamente inocente de qualquer má vontade em relação a Ele. Claro que se outros se opõem a Ele, podem fazê-lo, pois estamos em um país livre: que cada um faça o que quiser, mas eu estou perfeitamente livre de  culpa.”
Um homem não age dessa maneira quando vê que alguém está sendo assassinado. Não fica olhando nem afirma que preferiria não interferir. Diz que não podes evitar as opiniões de outros.  Por acaso não possui sua própria opinião sobre Jesus? Dizes: “não; não penso nunca nEle?  Por acaso isso não é desprezo? Prefere não ter nenhuma opinião sobre Aquele que afirma ser seu Deus?  Sobre aquele que tem que ser seu Salvador, e se não o é,  perecerás para sempre? Não pode desviar-se dessa maneira. Agora que a rebelião está se armando, precisa tomar partido: tem que ser leal ou converter-te em traidor. O estandarte está desfraldado, e cada qual tem que tomar partido. Sua negligência em relação a Jesus contradiz sua posição neutra. Você pretende não meter-se com Ele, mas isso acaba sendo fatal. Um homem está preso naquele aposento alto daquela casa em chamas, e você pode salvá-lo. Mas você recusa-se a envolver-se na questão, pois para você é algo indiferente, e assim, deixa tudo nas mãos dos bombeiros e de seus ajudantes. Enquanto isso, o homem perece porque recusa-se a ajudá-lo. Eu digo que não tem desculpa: o sangue desse homem jaz à tua porta. Era seu dever tê-lo resgatado. Assim, o Senhor Jesus Cristo vem aqui entre os homens e é perseguido. Você fala tranquilamente: “sem dúvida é lamentável, mas não posso evitá-lo.” Perfeito; mas por sua falta de ação, está se colocando ao lado de Seus inimigos.
Você diz que é tão justo que não necessita de um Salvador? Isso, na verdade, é esbofetear a face de Jesus. Ele vem para ser um Salvador, e você diz a Ele que é supérfluo; que você é tão bom que podes defender-se sozinho,  sem necessidade de ser lavado com Seu sangue. Isto é cuspir em Seu rosto, é dizer a Ele que foi um louco ao morrer por ti. Por que haveria de derramar Seu sangue se é um inocente sem necessidade disso? De fato, acusas a Deus de insensatez por ter provido uma grandiosa propiciação quando as pessoas boas, como tu és, não necessita nada parecido. Não creio que alguém possa insultar O Filho do Deus Altíssimo, de maneira mais grosseira, na verdade, é crucificá-lo! O homem com justiça própria que diz: “eu estou limpo,” retira a glória do sacrifício de Cristo, retira o propósito de Sua vida, a dignidade de Sua pessoa, a sabedoria de Sua obra inteira. O próprio coração de Deus está posto no propósito da morte de Cristo, e apesar disto, o homem com justiça própria considera isto uma insensatez.
Vamos, amados leitores, não há espaço para que nenhum de nós acuse a seu semelhante: vamos todos aos pés de Jesus com humildes confissões, a Jesus que ressuscitou dos mortos, e digamos a Ele em coro, cheios de tristeza—

“Estas dores pertencem a mim,
Sou eu que devo sofrer por minha perversidade,
Com os pés e as mãos amarrados com fortes correntes,
Teus açoites, teus grilhões, todo o resto
Que suportaste, minha alma deve sofrer,
Pois eu sim mereci estes tormentos.
Contudo, por minha causa Tu levaste
Sobre Ti, em amor, todas as cargas
Que esmagavam meu espírito contra o chão:
Sim; foste feito maldição por mim,
Para que eu possa ser abençoado através de Ti:
Minha saúde se encontra em Tuas feridas.”

Charles Haddon Spurgeon
Enviado por Silvio Dutra Alves em 15/11/2013
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