Legado Puritano
Quando a Piedade Tinha o Poder
Textos
O Perigo do Chamado “Mundo Cristão”

 
Uma Chamada Séria a Uma Vida Santa e Devota – Cap XVII
 
Quão difícil é a prática da humildade pelo mundo. Todavia o cristianismo requer que vivamos ao contrário do mundo.
Cada pessoa, quando se aplica ao exercício desta virtude da humildade, deve se considerar como um aprendiz, como fosse aprender algo que é contrário aos antigos hábitos e disposições da mente, o que somente pode ser obtido através de prática diária e constante.
Isto não tem tanto a ver como aquele que tem que aprender alguma nova arte ou ciência, senão que tem muito também para desaprender, porque deve esquecer e deixar de lado o seu próprio ego, que tem tido por longo tempo formado a si mesmo, e também se esquecer e se afastar da abundância de paixões e opiniões, da moda em voga, e o espírito do mundo, que se fizeram naturais para ele.
Ele deve deixar de lado o seu próprio ego, porque, como nós nascemos em pecado, por isso, o orgulho, que é tão natural para nós como o amor-próprio desmedido, e que continuamente brota do mesmo. E esta é a razão, porque o cristianismo é muitas vezes representado como um novo nascimento, e um novo espírito.
Ele deve deixar de lado as opiniões e as paixões que tem recebido do mundo, porque a moda do mundo, pela qual temos sido conduzidos, como numa torrente, antes que pudéssemos fazer julgamentos corretos sobre o valor das coisas, é, em muitos aspectos, contrária à humildade; e assim precisamos desaprender o que o espírito do mundo nos ensinou, antes que possamos estar sujeitos ao espírito de humildade.
O diabo é chamado nas Escrituras de o príncipe deste mundo, seja porque ele tem um grande poder no mesmo, ou porque muitas das suas regras e princípios são inventados por este espírito maligno, o pai de todos os enganos e mentiras,  que nos separa de Deus, ou nosso retorno à felicidade.
Agora de acordo com o espírito e moda deste mundo, cujo ar corrupto todos nós temos que respirar, há muitas coisas que se passam por grandes e honoráveis, e muito desejáveis, que estão muito longe de serem assim, que a verdadeira grandeza e honra de nossa natureza consiste em não desejá-las.
Ter riquezas, belas casas, e roupas finas, ser belo fisicamente, ter títulos  honoríficos, estar acima de nossos semelhantes, comandar e ser reverenciado por outras pessoas, ser olhado com admiração, superar  nossos inimigos com poder, para subjugar todos os que se opõem a nós, e viver muito para comer e beber, e se deliciar na forma mais onerosa , estas são as grandes e desejáveis coisas para as quais o espírito do mundo atrai os olhos de todas as pessoas. E muitos homens têm medo de ficar parados, e não se engajarem na busca destas coisas, a menos que o próprio mundo lhes prive das mesmas.
A história do Evangelho, é principalmente a história de Cristo e a sua vitória sobre este espírito do mundo. E os verdadeiros cristãos são apenas aqueles que, seguindo o Espírito de Cristo, têm vivido de modo contrário a este espírito do mundo.
“Se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele”, diz o apóstolo Paulo em Rom 8.9, e o apóstolo João em I Jo 5.4: “Todo aquele que é nascido de Deus, vence o mundo.”
“Coloque suas afeições nas coisas do alto, e não nas que são da terra; porque morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.”, Col 3.2.
Esta é a linguagem de todo o Novo Testamento. Esta é a marca do Cristianismo, você deve estar morto , ou seja, morto para o ego e para as inclinações do mundo, e viver uma nova vida no Espírito de Jesus Cristo.
Mas, não obstante a clareza e simplicidade destas doutrinas que nos ordenam renunciar ao mundo, todavia grande parte dos cristãos vivem e morrem como escravos dos costumes e disposições do mundo.
Quantas pessoas estão inchadas com orgulho e vaidade, por essas coisas das quais não sabem qual é o valor afinal, mas que são admiradas no mundo?
Quantas pessoas temem ter suas casas mal mobiliadas, ou a si mesmas mesquinhamente vestidas, por esta única razão: para que o mundo não as tenha como pessoas de baixa ou média condição?
Quão frequentemente um homem tem cedido à arrogância e à má índole de outros, e mostrado um temperamento dócil, mas que não se atreveria a passar por um homem pobre de espírito, na opinião do mundo?
Quantos homens, muitas vezes esquecem um ressentimento e perdoam uma afronta, mas que são temerosos que o mundo não lhe perdoasse?
Quantos não praticariam a temperança e a sobriedade cristã em sua máxima perfeição, se não fosse a censura que o mundo passa em cima de uma vida assim?
Outros têm intenções frequentes de viverem de acordo com as regras da perfeição cristã, mas ficam preocupados com a forma pela qual o mundo possa considerá-los.
Assim, fazemos com que as impressões que temos recebido do mundo escravizem nossas mentes, e não ousamos tentar ser eminentes aos olhos de Deus, e dos santos anjos, por medo de sermos pouco estimados pelos olhos do mundo.
A partir disto, surge a maior dificuldade da humildade, porque não pode subsistir em qualquer mente, caso não esteja morta para o mundo, e para todos os desejos de desfrutar de sua grandeza e honras. De modo que, a fim de ser verdadeiramente humilde, você deve desaprender todas essas noções, que tem aprendido por toda a sua vida desse espírito corrupto do mundo.
Você não pode fazer qualquer oposição contra os assaltos de orgulho; e os ternos afetos de humildade não podem ter lugar na sua alma, até que você interrompa o poder do mundo sobre você, e resolva não dar uma obediência cega às suas leis.
E uma vez que tiver feito progresso nisto, e que seja capaz de se levantar no meio da torrente das atrações e opiniões do mundo, e, examinar o mundo e o valor das coisas que são mais admiradas e  valorizadas no mundo, você terá dado um grande passo para alcançar a sua liberdade, e ter uma boa base para a mudança do seu coração.
Porque o poder do mundo é grande por ser construído em cima de uma obediência cega, e precisamos apenas abrir os nossos olhos, para nos livrarmos do seu poder.
Devemos considerar o comportamento que a profissão do Cristianismo requer de nós, no que diz respeito ao mundo.
Isto está claramente revelado nas seguintes passagens bíblicas:
“o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai,”, Gál 1.4.
“Eles procedem do mundo; por essa razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve.”, I Jo 4.5.
“Sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro jaz no Maligno.”, I Jo 5.19.
“Eles não são do mundo, como também eu não sou.”, João 17.16.
A grande vitória que os cristãos têm sobre o mundo está contida no mistério de Cristo na Cruz. Ele esteve lá, e dali, ele ensinou todos os cristãos como eles deveriam vencer o mundo, e tudo o que há no Evangelho é apenas a explicação, significado e aplicação deste grande mistério.
E o estado do cristianismo implica nada mais, senão uma inteira conformidade absoluta a esse espírito, que Cristo mostrou no misterioso sacrifício de si mesmo na cruz.
Cada homem é, portanto, um cristão, somente quando ele participa desse espírito de Cristo. Foi isso que fez Paulo apaixonadamente se expressar dizendo que Deus não permitisse que se gloriasse, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Mas por que ele se gloriaria? Será porque Cristo sofreu em seu lugar, e lhe isentou do sofrimento? Não, de maneira nenhuma. Mas porque a sua profissão da fé cristã lhe havia chamado para a honra de sofrer com Cristo, e de morrer para o mundo sob censura e desprezo, como Ele havia feito na cruz. Porque ele imediatamente acrescenta, se referindo à cruz: “pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo.”
Este, como você vê, foi o motivo de se gloriar na cruz de Cristo, porque ele lhe havia chamado para um estado como de morte e de crucificação para o mundo.
A necessidade de tal conformidade a tudo o que Cristo fez, e sofreu em nosso lugar, é muito simples de entender segundo todo o teor da Escritura.
Primeiro, quanto aos seus sofrimentos, esta é a única condição de evidenciar nossa salvação por meio deles - se sofremos com Ele,  também reinaremos com Ele.
Em segundo lugar, quanto à sua crucificação: “sabendo isto: que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos;”, Rom 6.6. Aqui  você vê, Cristo não é crucificado em nosso lugar, se  o nosso velho homem não estiver  realmente crucificado com ele – de outra forma a cruz de Cristo não nos beneficiará em nada.
Em terceiro lugar, quanto à morte de Cristo , a condição é a seguinte: Se nós morremos com Cristo, cremos que também viveremos com ele, Rom 6.8; II Tim 2.11. Se, portanto, Cristo tivesse morrido sozinho, se nós não estivéssemos mortos com ele, podemos estar tão certos por esta Escritura, que não viveremos com ele.
Por fim, quanto à ressurreição de Cristo, a Escritura nos mostra que devemos participar do benefício da mesma: “Se ressuscitaste com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está sentado à mão direita de Deus.”
Assim você vê, quão claramente a Escritura apresenta o nosso bendito Senhor, como nosso representante agindo e sofrendo em nosso nome, vinculando-nos e obrigando-nos a estar conformes a tudo o que ele fez e sofreu por nós.
Foi por esta razão, que Jesus disse a seus discípulos, e por eles a todos os verdadeiros crentes, que eles não são deste mundo, assim como ele não é deste mundo. Porque todos os verdadeiros crentes conformados aos sofrimentos, crucificação, morte e  ressurreição de Cristo, não vivem mais segundo o espírito deste mundo, mas a sua vida está escondida com Cristo em Deus.
Este é o estado de separação do mundo, para o qual todos os cristãos são chamados. Eles devem agora renunciar a toda disposição mundana, e serem regidos pelas coisas da outra vida, como para mostrar que eles são verdadeira e realmente crucificados, mortos e ressuscitados com Cristo. E isso é tão necessário para todos os cristãos - estar de acordo com esta grande mudança de espírito, para serem assim novas criaturas em Cristo, como foi necessário que Cristo padecesse, morresse, e ressuscitasse para a nossa salvação.
Quão alto a vida cristã é colocada acima dos caminhos deste mundo, está maravilhosamente descrito por Paulo com estas palavras: “Assim que, nós, daqui por diante, a ninguém conhecemos segundo a carne; e, se antes conhecemos Cristo segundo a carne, já agora não o conhecemos deste modo. E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas.”, II Cor 5.16.17.
Aquele que sente a força e o espírito destas palavras,  dificilmente pode suportar qualquer interpretação humana delas. Daí em diante, ele diz; isto é, desde a morte e ressurreição de Cristo, o estado do cristianismo se tornou tão glorioso estado,  que nem sequer se considera como Cristo estivesse na carne sobre a terra, mas como um Deus da glória no céu; nós nos conhecemos e não nos consideramos como homens na carne, mas como  companheiros e membros de uma nova sociedade, que tem todo o seu coração, disposições e conversação no céu.
Assim é que o cristianismo nos colocou para fora, e acima do mundo.
Agora , uma vez que foi o espírito do mundo, que pregou o nosso bendito Senhor na cruz, por isso todo o homem que tem o  espírito de Cristo, que se opõe ao mundo como ele fez, certamente vai ser crucificado pelo mundo de alguma forma ou de outra.
Porque o cristianismo ainda vive no mesmo mundo que Cristo viveu; e estes dois serão inimigos até o reino das trevas ser inteiramente subjugado.
Se você vivesse com nosso Salvador como seu verdadeiro  discípulo, seria então, odiado como ele foi, e se você vive agora em seu espírito, o mundo será o mesmo inimigo para você agora, como foi para ele em seu ministério terreno.
“Se fôsseis do mundo”, diz nosso bendito Senhor, “o mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia.”, João 15.19.
Estamos aptos a perder o verdadeiro significado dessas palavras, por considerá-las apenas como uma descrição histórica, de algo que foi o estado de nosso Salvador e seus discípulos naquele momento.
Mas essa é a leitura da Escritura como letra morta, porque descreve exatamente o estado de verdadeiros cristãos,  até o fim do mundo.
Porque, assim como o verdadeiro cristianismo não é nada mais, senão o espírito de Cristo, então se esse espírito comparecer na pessoa de Cristo em si mesmo, ou seus apóstolos, ou seguidores em qualquer época, é a mesma coisa, quem tem o seu espírito, será odiado, desprezado, e condenado pelo mundo, como ele foi.
Porque o mundo sempre amará os que sãos seus, isso é tão certo e imutável, como a oposição entre luz e trevas.
Você talvez dirá, que o mundo está agora se tornou cristão, pelo menos a parte dele em que vivemos, e por isso o mundo não deve ser considerado agora nesse estado de oposição ao Cristianismo, como quando era pagão.
É concedido, que o mundo agora professa o cristianismo. mas alguém poderá dizer, que este mundo cristão é o espírito de Cristo?
São seus temperamentos gerais os temperamentos de Cristo? São as paixões de sensualidade, o egoísmo, orgulho, cobiça,  ambição, e vanglória, menos contrários ao espírito do Evangelho, agora que eles estão entre os cristãos, do que quando eles estavam entre os pagãos? Ou você dirá, que os temperamentos e paixões do mundo pagão estão perdidos e foram embora?
Considere-se, em segundo lugar, que você está dizendo com o mundo. Agora isto é totalmente descrito por João: “porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo.”, I Jo 2.16. Esta é uma descrição exata e completa do mundo. Agora você vai dizer, que este mundo se tornou cristão?
Mas se tudo isso ainda subsiste, então, o mesmo mundo agora é o mesmo inimigo do cristianismo, que foi nos dias do apóstolo João.
Foi esse mundo que João condenou, como não sendo do Pai; se, portanto, perseguiu abertamente o Cristianismo, ele ainda está no mesmo estado de contrariedade ao verdadeiro espírito e santidade do Evangelho.
E de fato o mundo, professando o cristianismo, está tão longe de ser um inimigo menos perigoso do que era antes, porque ele tem destruído mais cristãos, do que nunca fizera antes por meio da perseguição mais violenta.
(De fato, o moderno cristianismo, que absorveu e incorporou os hábitos do mundo, inclusive no culto de adoração, tem impedido que a maioria dos cristãos vivam com o verdadeiro espírito de Cristo. E não se vivendo na fé genuinamente bíblica na vida, não se pode vencer o mundo, porque é somente esta fé que vence o mundo – nota do tradutor).
Devemos, portanto, estar tão longe de considerar o mundo como num estado de menos inimizade e oposição ao cristianismo, do que fora nos primeiros tempos do evangelho, que é preciso  precaver-se contra ele como sendo um maior e mais perigoso inimigo agora, do que fora naqueles dias antigos.
É um inimigo maior, porque tem maior poder sobre os cristãos por seus favores, riquezas, honras, prêmios e proteções, do que tinha pelo fogo e fúria de suas perseguições.
É um inimigo mais perigoso, por ter perdido a sua aparência de inimizade. A sua profissão do cristianismo faz com que não seja mais considerado como um inimigo, e, por conseguinte, a maioria das pessoas são facilmente persuadidas a se resignarem a serem regidas e dirigidas por ele e seus costumes.
Não há nada, portanto, que um bom cristão deve ser mais desconfiado, ou mais se guardar constantemente contra, do que a autoridade do chamado mundo cristão.
Os cristãos primitivos não tinham nada a temer do mundo pagão, senão o perder suas vidas, mas o mundo atual que finge ser seu amigo, torna difícil para os cristãos salvarem a sua religião.
Enquanto o orgulho, sensualidade, cobiça e ambição, somente tinham autoridade sobre o mundo pagão, os cristãos eram por conseguinte, mais preocupados em ter as virtudes contrárias a isto. Mas quando orgulho, sensualidade, cobiça e ambição, têm autoridade sobre o Mundo Cristão, então os cristãos estão expostos a um maior perigo, não somente de ser envergonhados por tal prática, mas de perderem a própria noção da piedade do Evangelho.
Não há, portanto, quase nenhuma possibilidade de salvar a si mesmo do mundo atual, senão, por considerá-lo como o mesmo ímpio inimigo a toda a verdadeira santidade, como ele é  representado nas Escrituras; e se estando seguro de que é tão perigoso estar de acordo com as orientações e paixões do mundo, agora no mundo que se diz cristão, como quando ele era pagão.
Espero, com estas reflexões, ajudar a romper as dificuldades, e resistir àquelas tentações, que a autoridade e a moda do mundo levantaram contra a prática da humildade cristã.
 
Tradução e adaptação feitas pelo Pr Silvio Dutra, do décimo sétimo capitulo do livro de William Law, em domínio público, intitulado Uma Chamada Séria a Uma Vida Santa e Devota. William Law, foi professor e mentor por vários anos de John e Charles Wesley, George Whitefield – principais atores do grande avivamento do século XVIII, que se espalhou por todo o mundo - Henry Venn, Thomas Scott e Thomas Adam, entre outros, que foram profundamente afetados por sua vida consagrada a Deus, e sobretudo pelo conteúdo deste livro.
 
William Law
Enviado por Silvio Dutra Alves em 28/12/2013
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