O Enfermo que Foi Deixado para Trás
Por Charles Haddon Spurgeon
“Erasto ficou em Corinto, e deixei Trófimo doente em Mileto” 2 Timóteo 4:20
Estas estão entre as últimas palavras do apóstolo Paulo, encontradas nos versos finais da última de suas epístolas. O capítulo nos lembra da despedida de um homem moribundo feita ao seu amigo mais querido, em que, perto da morte, traz a mente os companheiros de sua vida. Em meio a suas lembranças afetuosas, encontramos Paulo recordando-se de Trófimo, com quem dividiu os perigos dos rios e as ameaças dos ladrões que, sem interrupção, acompanharam a carreira do apóstolo. Paulo havia deixado o bom homem doente em Mileto e como Timóteo estava em Éfeso, encontrando-se assim a uma curta distância, não havia necessidade de sugerir-lhe que o visitasse, pois ele certamente o faria.
O amor de Jesus opera grande ternura e união nos corações dos Seus discípulos. A superabundância da maravilhosa alma do nosso Senhor encheu todos os Seus seguidores verdadeiros com afeto: como Jesus amou a Paulo, Paulo amou a Timóteo e Timóteo sem nenhuma dúvida amou a Trófimo. Deste amor surge o sentimento de comunhão, de tal forma que, na simpatia que partilham, dividem as alegrias e as tristezas uns dos outros. Quando um membro se regozija, todo o corpo se regozija, e quando um membro sofre, todo o corpo sofre com ele.
Trófimo estava doente e Paulo não podia se esquecer dele, embora ele próprio estivesse esperando morrer uma morte de mártir em algumas semanas! Tampouco queria que Timóteo ignorasse o fato, tanto que, por duas vezes, dentro de um curto trecho de versos, Paulo o apressa para vir a Roma, dizendo: “Procura vir antes até mim”.
Se Timóteo não podia visitar pessoalmente o amigo doente, mesmo assim era bom que soubesse de sua aflição, para que, então, se lembrasse dele em suas orações. “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus”. (1ºJoão 4:7) Vamos nos lembrar daqueles que são um conosco em Cristo e, especialmente, vamos levar em nossos corações todos os que estão sendo afligidos em mente, corpo, ou em suas vidas materiais.
Se nós tivermos que deixar Trófimo em Mileto, ou em Brighton, ou em Ventnor, deixemos o amor do nosso coração com ele. E se ouvirmos que outro Trófimo está caído doente perto de nossa casa, vamos aceitar isso como motivo suficiente para ajudarmos o amigo aflito. Que uma simpatia santa permeie todas as nossas almas. Por mais ativos e zelosos que sejamos, ainda não teremos atingido um caráter perfeito se não formos compassivos, sensíveis e atenciosos com os que choram, pois esta é a mente de Cristo.
Bem simples é a afirmação do nosso texto, porém é encontrada em um livro inspirado e, portanto, é mais do que uma nota comum em uma carta qualquer. Outro verso do mesmo capítulo, “Quando vieres, traze a capa que deixei em Trôade, na casa de Carpo, e os livros, principalmente os pergaminhos” (1º Timóteo 4:13) foi considerado abaixo da dignidade da Inspiração, mas nós não cremos assim. O Deus que conta os cabelos da nossa cabeça pode muito bem falar de Seu servo doente nas páginas do livro inspirado! Em vez de discussões sobre a pequenez do fato registrado, vamos admirar “o amor do Espírito“, que, enquanto levanta a Ezequiel e a Daniel acima das esferas e eleva a linguagem de Davi e de Isaías ao campo supremo da poesia e da eloqüência, também se digna a inspirar tal linha como esta: “Deixei Trófimo em Mileto doente“.
Podemos aprender mais alguma coisa desta linha de caligrafia apostólica? Vamos descobrir. Se o mesmo Espírito divino que a inspirou brilhar em cima dela, não devemos lê-la em vão!
I. Considerando o fato de que Paulo deixou Trófimo doente em Mileto, aprendemos que ESTA É A VONTADE DE DEUS, QUE ALGUNS HOMENS BONS NÃO GOZEM DE BOA SAÚDE. Qualquer que fosse a doença que afetou a Trófimo, Paulo certamente poderia tê-lo curado já que o Espírito Divino tinha permitido o uso de seus poderes miraculosos para esse fim. Ele fez Êutico acordar da morte (Atos 20:9) e devolveu a utilidade aos membros inferiores do aleijado em Listra. (Atos 14:8-10) Temos, portanto, plena certeza de que se Deus tivesse permitido o apóstolo a usar seu poder de cura, Trófimo teria deixado sua cama e continuado sua viagem para Roma. No entanto, esta não foi a vontade de Deus. A videira que produz bons frutos deve ser podada, e Trófimo precisava sofrer: havia um propósito que devia ser cumprido através de sua fraqueza e que não poderia ser alcançado em sua saúde. Restauração instantânea poderia ter sido dada, mas foi suspensa sob direção divina.
Esta doutrina nos afasta do conceito tolo de casualidade. Nós não somos feridos por flechas atiradas ao acaso, mas antes, sofremos dores debaixo do determinante conselho do Céu! Uma mão dominante está presente em toda parte, prevenindo ou permitindo o mal, e não deixa que nenhum dardo de enfermidade lançado pelo arco da morte voe furtivamente. Se alguém deveria ficar doente, foi a sábia Providência que selecionou Trófimo, pois era melhor que ele estivesse mal de saúde em vez de Tito, Tíquico ou Timóteo. Foi bom também que ele adoecesse em Mileto, próximo à sua cidade natal, Éfeso. Nem sempre conseguimos ver a mão de Deus, mas podemos ter certeza de que ela sempre está lá. Se nem um pardal cai em terra sem a ordem de nosso Pai, certamente nenhuma criança da família divina é derrubada se não for esta a Sua santa vontade! A sorte é uma idéia pagã que não pode sobreviver frente a um Deus Onipresente, Onisciente e Onipotente! Que esta palavra, “sorte”, seja expulsa de toda mente cristã! É uma desonra para o Senhor e doloroso para nós mesmos!
Esta doutrina também nos liberta da angústia de pensarmos que os homens sofrem por causa de seus pecados pessoais. Muitas doenças são resultado direto da intemperança, ou de algum outro tipo de perversidade; mas aqui estamos falando de um irmão valoroso, aprovado, que está acamado e é deixado na estrada com um mal da qual ele não é culpado em nenhum grau. É muito comum hoje em dia homens de espírito impiedoso e cruel atribuírem doenças, inclusive contra aqueles que são verdadeiros filhos de Deus, à falhas em seu estilo de vida. Perguntamos-nos como eles gostariam de ser tratados no que diz respeito a este assunto se fossem eles que estivessem sofrendo e pudessem lavar as mãos na água da inocência em relação às suas vidas diárias? No dia de nosso Senhor eles Lhe disseram: “Senhor, aquele que tu amas está doente” (João 11:3). Mas Salomão, muito antes, escreveu: “Porque o Senhor repreende aquele a quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem“(Provérbios 3:12). Este foi um discurso muito melhor, mais humano e mais verdadeiro do que a filosofia congelada dos tempos modernos, que encerra a doença de cada homem na sua própria violação da lei natural e que, em vez de derramar o bálsamo da consolação, espalha o ácido sulfúrico da caluniosa insinuação!
Deixe que o aflito examine a si mesmo para ver se a vara não foi enviada para corrigir nele algum mal secreto e que ele considere atentamente o que deve mudar; porém longe de nós ficarmos ao seu lado, como juízes ou lictores, olhando para o nosso amigo como um infrator, bem como um sofredor! Tal brutalidade pode ser deixada aos filósofos, mas não para os filhos de Deus!
Não podemos pensar que Trófimo é inferior porque ele está doente em Mileto. Ele provavelmente é um homem muito melhor do que qualquer um de nós e talvez por isso mesmo passe por mais provações. Há ouro nele, o que justifica colocá-lo no cadinho; ele produz frutos tão preciosos que vale a poda; ele é um diamante de água tão pura que fará valer o trabalho de lapidação.
Isto pode não ser a realidade em muitos de nós e por isso escapamos das Suas provas mais pungentes. Ouçamos então Tiago, que disse, “Eis que temos por bem-aventurados os que sofreram” (Tiago 5:11), e Davi, que escreveu, “ Bem-aventurado é o homem a quem tu castigas, ó SENHOR, e a quem ensinas a tua lei“(Salmo 94:12). O que dizem as Escrituras? “Porque o Senhor corrige o que ama, E açoita a qualquer que recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai não corrija?” (Hebreus 12:6-7) Lázaro de Betânia, Dorcas, Epafrodito e Trófimo são alguns membros deste grande exército de pessoas doentes a quem o Senhor ama em suas enfermidades, para quem foi escrita a promessa: “O Senhor o sustentará no leito da enfermidade; tu lhe amaciarás a cama na sua doença” (Salmo 41:3).
II. Temos apenas força e experiência para dar simples sugestões; também notamos que, em segundo lugar, HOMENS BONS PODEM SER DEIXADOS PARA TRÁS QUANDO PARECEM SER MAIS NECESSÁRIOS, exatamente como aconteceu com Trófimo quando o apóstolo já envelhecido requereu sua ajuda. Paulo precisava desesperadamente dele quando foi obrigado a deixá-lo em Mileto; tanto que ele escreve tristemente, “Porque Demas me desamparou, amando o presente século, e foi para Tessalônica, Crescente para Galácia, Tito para Dalmácia. Só Lucas está comigo” (1º Timóteo 4:10-11). “Também enviei Tíquico a Éfeso” (v.12). Quão feliz Paulo teria ficado com a companhia de Trófimo, considerando como ele pede a Timóteo que venha o mais rápido possível e traga Marcos, cujo serviço era muito necessário a Paulo.
No entanto, nem mesmo por causa de Paulo, Trófimo teve a saúde restaurada milagrosamente! Seu Senhor entendeu que era necessário que ele sentisse o calor do forno, por isso Trófimo foi lançado ao cadinho. Pensamos que a Igreja não pode dispensar o ministro que é reto, o missionário incansável, o diácono fiel, o professor dedicado, mas Deus não pensa assim! Ninguém é indispensável na casa de Deus! Ele pode fazer seu próprio trabalho, não só sem Trófimo, mas mesmo sem Paulo! Sim, podemos ir mais longe; às vezes ocorre de o trabalho do Senhor ser vivificado por meio do falecimento daquele de quem Ele parecia depender!
Quando uma árvore grande e exuberante é cortada, muitas árvores menores que estavam ao lado, pequenas e atrofiadas, de repente começam a crescer vigorosamente; da mesma maneira, um bom homem pode fazer muito, mas quando ele é removido de seu meio, os outros se revelam capazes de fazer mais. Doenças temporárias nos grandes trabalhadores podem trazer para frente aqueles que, por pura modéstia, mantiveram-se na retaguarda; e o resultado pode ser um grande ganho.
O pobre Trófimo tinha sido, em seus dias de saúde, o responsável por, sem querer, colocar Paulo em um mundo de problemas, pois lemos em Atos 21: 27 que os judeus criaram um tumulto, porque achavam que Paulo havia levado Trófimo para dentro do templo para profanação. Agora, que ele poderia ter sido útil, ficou doente, e, sem dúvida, a doença foi uma grande tristeza para Trófimo. Mas como foi com ele, deve ser conosco: não há alternativa senão submeter-se à mão de Deus e ter a certeza de que o Senhor está sempre certo.
Por que não nos rendemos de uma vez? Por que mordemos o freio e batemos as patas no chão, inquietos por estarmos na estrada? Se o Senhor nos manda ficar parados, não podemos nos aquietar? Mentes ativas tendem a tornar-se espíritos inquietos, sob o peso da mão que restringe; a energia logo se azeda e se transforma em rebelião, e brigamos com Deus porque não temos permissão para glorificá-Lo da nossa maneira; é uma guerra sem sentido que no fundo denuncia que temos vontade própria, vontade esta que só se submete a Deus com a condição de ser satisfeita.
Irmãos e irmãs, quem escreve estas linhas sabe o que escreve porque este é o veredicto da sua experiência; a obra de Deus precisa de nós muito menos do que imaginamos e Deus nos quer cientes deste fato, pois Ele não dará a Sua glória a instrumentos humanos assim como Ele não irá permitir que o seu louvor seja dado a imagens esculpidas!
III. Nosso texto nos mostra claramente que os homens bons DESEJAM QUE A OBRA DO SENHOR PROSSIGA SEM SE IMPORTAREM O QUE VAI ACONTECER COM ELES ENQUANTO DEUS TRABALHA.
Paulo não abandonou Trófimo, mas o deixou porque um chamado maior o convocou a ir até Roma. Podemos ter certeza de que Trófimo não queria atrasar o grande apóstolo. Estava, inclusive, feliz em ficar. Certamente, ambos sentiam a separação, mas como verdadeiros soldados de Cristo, suportaram a dor e, por um tempo, abriram mão da companhia um do outro em prol da causa.
Seria uma grande tristeza para um trabalhador honesto saber que qualquer operário da mesma empresa diminuiu seu ritmo de trabalho por causa dele. O doente em um exército em campo é necessariamente um fardo, porém não no exército do Rei dos reis!
A doença espiritual é um incômodo doloroso, mas a doença do corpo não deve atrasar o anfitrião. Se não podemos pregar podemos orar. Se uma obra está fora do nosso alcance, nós podemos tentar outra, e se não podemos fazer nada, a nossa incapacidade deve servir como uma chamada para que os funcionários úteis trabalhem com mais vigor! Trófimo está doente, então deixe Timóteo ser o mais produtivo! Trófimo não pode apoiar o apóstolo, então que Timóteo se esforce mais para vir antes do inverno! Assim, atuando como um incentivo, a falta de serviço de um homem pode produzir dez vezes mais em outros homens que são chamados para um esforço extra.
Irmãos, será um doce alívio para as dores de um pastor doente ver cada um de vocês empenhados na obra. Seu descanso forçado será mais suportável se ele souber que a Igreja de Deus não está sendo afetada por sua inatividade. E sua mente e espírito colaborarão para a saúde do seu corpo se ele contemplar o fruto do Espírito de Deus em todos vocês, mantendo-os fiéis e zelosos. Vocês o farão, pela glória de Jesus?
Charles Haddon Spurgeon
Enviado por Silvio Dutra Alves em 25/02/2014