A Palavra de Deus é Viva e Eficaz
Por João Calvino
A palavra de Deus é viva e eficaz - (Hb 4.12). Tudo o que ele diz aqui com relação à eficácia da Palavra é com o propósito de que soubessem que não poderiam desmerecê-la impunemente. É como se dissesse: Sempre que o Senhor se nos acerca com sua Palavra, ele está tratando conosco da forma mais séria, com o fim de mover todos os nossos sentidos mais profundos. Portanto, não há parte de nossa alma que não receba sua influência. Entretanto, antes de darmos um passo adiante, carece que consideremos se o apóstolo está falando da Palavra em termos gerais, ou se ele está fazendo, aqui, uma referência particular àqueles que crêem. E geralmente aceito que a Palavra de Deus não é igualmente eficaz em todos. Ela aplica seu poder nos eleitos, com o fim de humilhá-los através de um genuíno reconhecimento do que na verdade são, para que fujam e se escondam na graça de Cristo. Isso jamais aconteceria, se a Palavra não penetrasse as profundezas do coração. A hipocrisia, que se acha presente nos admiráveis e infinitamente tortuosos recantos dos corações humanos, deve ser erradicada. Devemos estar não só humildemente dispostos a espicaçar-nos e a afligir-nos, mas também a ser profundamente feridos, para que, prostrados pelo senso da morte eterna, aprendamos a morrer para nós mesmos. Jamais seremos renovados em toda a nossa mente (como Paulo requer em Efésios 4.23) até que nosso velho homem haja sido morto pelo gume dessa espada do Espírito. Eis a razão por que Paulo diz em outro lugar [Fp 2.17] que aqueles que crêem são oferecidos em sacrifício a Deus, visto que não podem ser trazidos à obediência a Deus senão pela morte de seus próprios desejos, bem como não podem ver a luz da sabedoria divina senão pela destruição de sua sabedoria carnal. Tudo isso não pode aplicar-se no caso dos incrédulos. Ou displicentemente desconsideram a Deus quando lhes fala, e dessa forma motejam dele, ou bradam contra sua doutrina e se levantam insidiosamente contra ela. Sendo a Palavra de Deus semelhante a um martelo, o coração deles é semelhante a uma bigorna, de modo que sua dureza repele os golpes por mais fortes que sejam. Eles se acham muito longe para que a Palavra de Deus penetre neles, até ao ponto de dividir alma e espírito. Desse modo parece que essa cláusula deve restringir-se somente àqueles que crêem, visto que unicamente eles podem ser examinados no mais profundo de seu ser.
Em contrapartida, o contexto do apóstolo revela que este é um princípio geral que se aplica também aos incrédulos. Embora se oponham à Palavra de Deus com um coração de ferro ou de aço, não obstante devem necessariamente ser refreados por seu próprio sentimento de culpa. Riem, é verdade, mas é um riso sardônico, porque sentem como se estivessem sendo sufocados interiormente, e forjam toda espécie de evasivas com o intuito de evitar a aproximação do tribunal de Deus. Por mais indispostos que eles sejam, são arrastados para a presença dessa mesma Palavra que tão veementemente ridicularizam, para que sejam comparados apropriadamente com cães furiosos, que mordem e esganam a corrente a que se acham presos, embora sem qualquer efeito, porque ainda permanecem firmemente acorrentados. Além disso, embora o efeito dessa Palavra talvez não se revele imediatamente, no mesmo dia, contudo o resultado será inevitável, e aquele que a prega descobrirá que a ninguém a pregou em vão. Cristo certamente falou em termos de aplicação geral quando afirmou: "Quando ele vier convencerá o mundo..." [Jo 16.8]. O Espírito exerce esse juízo através da pregação do evangelho.
Finalmente, ainda quando a Palavra de Deus nem sempre manifeste esse poder nos homens, todavia ela, em alguma medida, o possui em si mesma. O apóstolo está discutindo, aqui, acerca da natureza e da função própria da Palavra para o propósito único, a fim de que saibamos que assim que ela soa em nossos ouvidos, nossas consciências são citadas como acusadas diante do tribunal de Deus. É como se dissesse: Se porventura alguém presume que a Palavra de Deus ecoa no vazio, ao ser proclamada, esse tal está fazendo uma grande confusão. Essa Palavra é algo vivo e cheio de poder secreto, a qual não deixa nada no homem que não seja tocado. A suma de tudo isso é que tão logo Deus abra seus santos lábios, todos os nossos sentidos também devem abrir-se para receber sua Palavra, porque não faz parte de sua vontade permitir que suas palavras sejam semeadas em vão, nem tampouco feneçam ou desapareçam no solo da vida, senão que desafiem eficazmente as consciências humanas, até que as tragam jungidas ao seu domínio. Ele, pois, dotou sua Palavra com tal poder, para que a mesma perscrute cada área de nossa alma, para revelar os escrutínios dos pensamentos, para decidir entre as afeições e para manifestar-se como juiz.
Aqui surge uma nova questão, se essa Palavra deve ser considerada como sendo a lei ou o evangelho. Os que entendem que o apóstolo está falando da lei, evocam estes testemunhos paulinos: que é um ministério de morte; que é a letra que mata [2 Co 3.6-7]; que não opera outra coisa senão ira [Rm 4.15], e outros da mesma natureza. Mas aqui o apóstolo realça seus efeitos divergentes. E, por assim dizer, um gênero de matança que faz viva a alma, e que se dá através do evangelho. Devemos entender, pois, que quando o apóstolo diz que ela é viva e eficaz, ele está a referir-se à doutrina geral de Deus. Paulo dá testemunho de tal efeito [2 Co 2.16], dizendo que de sua pregação exala um odor de morte para a morte daqueles que não crêem, bem como de vida para a vida dos fiéis, de modo que jamais fala em vão, sem que conduza alguns à salvação, compelindo outros à destruição. Esse é o poder de atar e desatar que o Senhor conferiu a seus apóstolos [Mt 18.18]. Esse é o poder do Espírito no qual Paulo se gloria [2 Co 10.4]. Aliás, ele jamais nos promete salvação em Cristo sem, em contrapartida, pronunciar vingança sobre os incrédulos que, ao rejeitarem a Cristo, trazem morte sobre si próprios.
Além do mais, é mister que observemos que o apóstolo, aqui, está a discutir a Palavra de Deus que nos é comunicada pelo ministério dos homens. São dementes e mesmo danosas todas as noções de que, não obstante a Palavra interna ser certamente eficaz, aquela que emana dos lábios humanos é morta e carente de qualquer efeito. Admito que a eficácia certamente não flui da língua humana, nem consiste em seu próprio som, senão que deve ser atribuída totalmente ao Espírito Santo; no entanto não impede o Espírito de manifestar seu poder na Palavra que é proclamada. Porque Deus mesmo não fala senão através dos homens; ele toma grande cuidado para que sua doutrina não seja recebida com descaso por seus ministros serem homens. E assim, quando Paulo diz que o evangelho é o poder de Deus [Rm 1.16], deliberadamente distinguiu sua própria pregação com tal honra, a qual o apóstolo percebeu ser aprovada por alguns e rejeitada por outros. Ao ensinar-nos em outro lugar [Rm 10.8-10] que a salvação nos é conferida pelo ensinamento proveniente da fé, ele expressamente diz que essa é a doutrina que é anunciada. Vemos que Deus sempre recomenda publicamente a doutrina que nos é ministrada pelo esforço humano, com o propósito de induzir-nos a recebê-la com reverência.
Ao dizer que a Palavra é viva, é preciso entender tal expressão "em ralação aos homens". Isso se faz ainda mais evidente à luz do segundo adjetivo. Ele mostra que espécie de vida ela possui ao prosseguir chamando-a eficaz. O objetivo do apóstolo era ensinar-nos o gênero de utilidade que a Palavra tem para nós. A Escritura faz uso da metáfora da espada em outras passagens, o apóstolo, porém, não se contenta com uma simples comparação. Ele diz que a Palavra de Deus é mais cortante que qualquer espada; aliás, uma espada de dois gumes, porque em sua época era freqüente o caso de espadas que só cortavam de um lado, e do outro não.
Penetra até... etc. O substantivo alma amiúde significa o mesmo que espírito, mas quando são ambos associados, a primeira inclui todas as afeições, enquanto que o último indica a faculdade a que chamam intelectual. Assim também em 1 Tessalonicenses 5.23, quando Paulo ora a Deus para que guardasse o espírito, a alma e o corpo deles incorruptíveis até à vinda de Cristo, ele quer dizer simplesmente que permanecessem puros e santos em sua mente e vontade e ações exteriores. Semelhantemente, quando Isaías diz [26.9]; "Com minha alma suspiro de noite por ti, e com o meu espírito dentro em mim", certamente que sua intenção era que seu esforço em buscar a Deus era tão profundo, que aplicava sua mente tanto quanto seu coração a tal intento. Estou consciente de que há aqueles que apresentam uma interpretação diferenciada. Mas espero que toda pessoa sensível esteja disposta a concordar comigo.
Voltemos à passagem que ora estamos a considerar. A Palavra de Deus penetra ao ponto de dividir alma e espírito. Significa que ela testa toda a alma de uma pessoa. Ela explora seus pensamentos e sonda sua vontade e todos os seus desejos. O mesmo significado se acha implícito na frase juntas e medulas. Significa que não há nada tão difícil ou sólido numa pessoa, nada tão profundamente oculto que a eficácia da Palavra não penetre até lá. Isso é o que Paulo diz em 1 Coríntios 14.24, ou seja: que a profecia tem o poder de convencer e julgar os homens, a fim de que os segredos do coração se manifestem. Visto que a função de Cristo é descobrir e trazer a lume os pensamentos que fluem dos recessos mais profundos do coração, em grande medida ele o faz através do evangelho.
A Palavra de Deus, portanto, é Kpitikós (=discernidora), porque traz à mente humana a luz do conhecimento, como se a tirasse de um labirinto onde jazia outrora enredada. Não há trevas mais densas do que a incredulidade, e a hipocrisia nos cega de uma forma terrificante. A Palavra de Deus dissipa tais trevas e faz a hipocrisia bater em retirada. É daqui que emana o discernimento e o juízo que o apóstolo menciona, visto que os vícios que se ocultam sob a falsa fachada de virtudes começam agora a descortinar-se e sua aparência se desvanece. Ainda quando os réprobos fiquem por algum tempo ocultos em seus covis, descobrirão que até mesmo ali a luz da Palavra finalmente penetrou, de modo que não podem escapar do juízo divino. Daqui se ergue seu lamento e deveras seu furor, porquanto se não forem estremecidos pela Palavra, jamais perceberiam sua loucura. Tentam escapar ou evadir-se e evitar seu poder, ou ainda procedem como se não a tenham notado. Mas Deus não permite que logrem sucesso. Portanto, enquanto caluniam ou injuriam a Palavra de Deus, admitem, embora a contra gosto ou relutantemente, que sentem seu poder em seu íntimo.
João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 07/03/2014