A CIRCUNCISÃO DO CORAÇÃO
Por John Wesley
“Circuncisão é a do coração, no espírito, e não na letra”. (Romanos 2.29)
1. A triste observação do homem sensato é que, hoje, o que prega os deveres essenciais do Cristianismo corre o risco de ser tido, por parte de seus ouvintes, na conta de “divulgador de doutrinas novas”. Tantos
são os homens que vivem alheios à substância da religião que ainda pretendem professar, que logo seja enunciada qualquer das verdades que realcem a diferença entre o Espírito de Cristo e o espírito do mundo,
exclamam: “Trazes s nossos ouvidos coisas estranhas: quiséramos saber o que elas significam”, embora o pregador lhes esteja anunciando a “Jesus e a ressurreição”, com sua conseqüência necessária: - Se Jesus
ressurgiu, devemos então morrer para o mundo e viver totalmente para Deus.
2. Dura palavra, esta, para o homem natural, que está vivo para o mundo e morto para Deus! Palavra que o tal não receberá facilmente como verdade divina, uma vez que ela é tão insusceptível de interpretação, que lhe parece nenhuma utilidade ou significação possuir. O homem natural “não recebe” as palavras “do Espírito de Deus”, tomadas em seu sentido claro e intuitivo: “são loucura para ele”; nem pode, na verdade” recebê-las, porque elas se discernem espiritualmente”: somente são perceptíveis através da
sensibilidade espiritual que nela ainda se acha adormecida. Por falta dessa sensibilidade o pecador rejeita como ociosa fantasia dos homens aquilo que na realidade é sabedoria e poder de Deus.
3. Que “a circuncisão é a do coração, no espírito, e não na letra”; que as marcas distintivas do verdadeiro seguidor de Cristo, do que está na condição de ser aceito por Deus, não são nem a circuncisão exterior, ou
batismo, ou qualquer outra forma externa, mas um reto estado da alma, a mente e o espírito renovados á imagem daquele que os criou, - eis uma das verdades importantes que somente podem ser discernidas espiritualmente. Isto o próprio apóstolo dá a entender nas palavras que se seguem: “... cujo louvor não vem dos homens, mas de Deus”, o que é como se ele houvera dito: “Não esperes, quem quer que sejas, tu que segues e teu grande Mestre, que o mundo, os homens que não o seguem, venham a dizer: Bem está,
servo bom e fiel! Sabe que a circuncisão do coração, o selo da tua chamada, é loucura para o mundo.
Contenta-te em esperar teu até o dia da manifestação do Senhor. Naquele dia terás o louvor de Deus perante a magna assembléia de homens e anjos”.
Tenho em vista investigar, primeiro, em que particularmente consiste essa circuncisão do coração; e, em segundo lugar, farei as reflexões que naturalmente ocorrem, a propósito daquela investigação.
I
1. Desejo investigar, primeiro, em que consiste essa circuncisão do coração, que receberá o louvor de Deus. De um modo geral, podemos observar ser ela a disposição habitual de alma que, nas Escrituras
Sagradas, se chama santidade, e que diretamente implica em purificação de pecados, “de toda impureza da carne e do espírito”, e, em conseqüência, ser homem dotado das virtudes que também havia em Cristo Jesus; ser “renovado no espírito” de sua “mente”, de modo a ser “perfeito como nosso Pai celestial é perfeito”.
2. Particularizando: a circuncisão do coração implica em humildade, fé, esperança e caridade. A humildade, uma justa apreciação de nós mesmos, purifica nossas mentes do alto conceito em que tivéssemos nossas próprias perfeições, daquela indevida opinião acerca de nossas capacidade e talentos,
que é genuíno fruto da natureza corrompida. A humildade inteiramente corta pela raiz este pensamento vão: “Sou rico, sábio e de nada preciso”; e convence-nos de que somos por natureza “infelizes, pobres, miseráveis, cegos e nus”. Convence-nos de que somos, por natureza, mesmo em nossa melhor condição,
pecado e vaidade; que a confusão, a ignorância e o erro reinam em nosso entendimento; que as paixões irracionais, terrenas, sensuais e diabólicas usurpam o domínio de nossa vontade; numa palavra: que não há nenhuma parte sã em nossa alma, estando subvertidos todos os fundamentos de nossa natureza.
3. Estamos convencidos, ao mesmo tempo, de que não somos capazes de auxiliar-nos a nós mesmos; de que, sem o Espírito de Deus, nada podemos fazer, senão acrescentar pecado a pecado; de que é somente Ele que opera em nós pelo seu ilimitado poder, seja o querer ou o praticar o bem; sendo-nos tão impossível nutrir um bom pensamento sem a assistência de seu Espírito, como o criar-nos a nós mesmos
ou renovar toda a nossa alma em justiça e verdadeira santidade.
4. O efeito seguro da formação desse reto juízo sobre a pecaminosidade e a incapacidade de nossa natureza, é o desprezo da “honra que vem dos homens”, que usualmente decorre de qualquer excelência que se supunha existir em nós. Aquele que se conhece a si mesmo, nem deseja nem aprecia o aplauso que sabe não merecer. É, pois, “coisa muito pequenina para ele o ser julgado segundo o conceito do homem”.
Tal homem tem toda razão de pensar, comparado as coisas que a seu respeito tem sido afirmadas, quer de
bem, quer de mal, com o que ele sente em si mesmo, que o mundo, exatamente como o deus deste mundo,
“é mentiroso desde o princípio”. E o mesmo se observa quanto aos que não são do mundo. Pode acontecer
que o crente tome o encargo de fazer o que Deus deseja: embora os incrédulos somente vejam nessas
obras a manifestação dum espírito ansioso de ser tomado como padrão das benevolências de seu Senhor,
se da boa escolha feita puder resultar que o homem melhor se habite a ser mais útil aos semelhantes, ele cumprirá sua determinação; porque, se os incrédulos julgam que as boas obras tenham o fito exclusivo de
lhes arrancar aprovação, o fiel de modo algum confia nisso: está certo de que, qualquer que seja o desejo de Deus, nunca lhe podem faltar meios de o realizar, visto ser Ele capaz de levantar, mesmo das pedras, servos que lhe agradem.
5. Esta é aquela humildade de mente que aprenderam de Cristo, seguindo seu exemplo e marchando em suas pegadas. E esse conhecimento de sua enfermidade, pelo qual são mais e mais purificados de uma parte dela, —o orgulho e a vaidade – predispõe a abraçar, de boa vontade, a segunda coisa que se inclui na circuncisão do coração: a fé, que é a única capaz de os curar, o único remédio dado debaixo dos céus para sanar sua enfermidade.
6. O melhor guia de cego, a luz mais segura para os que estão em trevas, o mestre mais perfeito do insensato – é a fé. Mas deve ser uma fé que seja “poderosa em Deus para derribar fortalezas”, - para derruir todos os preconceitos da razão corrompida, todos os costumes e hábitos ruins, toda a “sabedoria
do mundo, que é loucura para Deus”, como arroubos de imaginação, cimento de Deus, e reduz a cativeiro todo pensamento para a obediência de Cristo”.
7. “Todas s coisas são possíveis ao que” assim “crê”. Os olhos de seu entendimento sendo iluminados”, ele vê qual seja sua vocação – que é glorificar a Deus, que o comprou por perco tão elevado, em seu
corpo e sem seu espírito, que são agora de Deus pela redenção, assim como o eram pela criação. Sente que “a excelente grandeza de seu poder”, que levantou a Cristo dentre os mortos, é também capaz de vivificar-nos, a nós que estamos mortos em pecados, “pelo seu Espírito que habita em nós”. “Esta é a
vitória que vence o mundo: a vossa fé”; aquela fé que não somente é o fundamento inabalável de tudo quanto Deus revelou na Escritura – e em particular daquelas verdades importantes: “Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os peca-dores”; “Ele levou nossos pecados em seu próprio corpo para o madeiro”; “É a propiciação pelos nossos pecados e, não só pelos nossos, mas pelos de todo o mundo”, – mas também a revelação de Cristo em nosso coração; uma divina evidência ou convicção de seu amor, se deu livre, espontâneo amor a mim, pecador; uma segura confiança em sua misericórdia perdoadora, operando em nós pelo Espírito Santo; uma confiança pela qual todo verdadeiro crente é habilitado a dar este
testemunho: “Sei que meu Remidor vive”, que tenho um “Advogado para com o Pai” e que “Jesus Cristo, o Justo”, é meu Senhor e “a propiciação pelos meus pecados”; sei que Ele “me amou e entregou-se a si mesmo por mim”; que Ele me reconciliou com Deus e “tenho redenção pelo seu sangue e o perdão de
pecados”.
8. Uma fé, tal como essa, não pode deixar de demonstrar à saciedade o poder daquele que a inspira, libertando seus filhos do jogo do pecado e “purificando sua consciência de obras mortas”; fortalecendo-os de tal modo que não mais são constrangidos a obedecer ao pecado nos seus desejos, mas, em lugar de
“entregarem seus membros à iniquidade, como instrumentos de injustiça”, agora “se entregam” inteiramente “a Deus, como estando libertados da morte”.
9. Os que são assim nascidos de Deus, pela fé, também tem forte consolação na esperança. Esta é a outra qualidade em que implica a circuncisão do coração, — ou seja o testemunho de seu próprio espírito com
o Espírito, que testifica em seus corações que são filhos de Deus. Na verdade é o mesmo Espírito que neles opera a clara e alegre certeza de que seu coração é reto para com Deus; aquela boa segurança de que desde agora praticam, por sua graça, as coisas que são aceitáveis à sua vista; que se encontram no
caminho que leva à vida e, pela misericórdia de Deus, nele perseverarão até o fim. É Ele quem lhes dá um viva expectação de receber das mãos de Deus todas as boas dádivas, uma jubilosa expectativa daquela coroa de glória que lhes está reservada nos céus. Por essa âncora o cristão se guarda firme em meio das
ondas tempestuosas do mundo, sendo libertado do perigo de lançar-se contra um destes escolhos fatais: a presunção ou o desespero. Ele nem se desanima em face da inconcebível severidade de seu Senhor, nem “despreza as riquezas de sua bondade”. Não considera que as dificuldades da carreira que lhe está
proposta sejam maiores do que suas forças lhe permitam vencer, nem espera que elas sejam tão curtas que as possa vencer antes de esgotar todas as suas energias. A experiência dantes adquirida da luta cristã assegura-lhe que seu “trabalho não é em cão”, se faz “com energia o que suas mãos acham para fazer”,
assim, torna-se-lhe vedado o entreter pensamentos tão vãos como o de poder conseguir por qualquer virtude, qualquer louvor alcançado pelos corações fracos ou pelas mãos delicadas; ou, na verdade, por
quem quer que seja, a não ser por aqueles que prosseguem com o grande apóstolo dos gentios na mesma carreira: “Eu – disse ele – assim corro, não na incerteza; assim combato, não como quem açoita o ar; mas esbofeteio meu próprio corpo e sujeito-o à submissão, para que, por qualquer meio, tendo pregado aos
outros, não venha eu próprio a ser rejeitado”.
10. Pela mesma disciplina todo bom soldado de Cristo se adestra para suportar as provações. Confirmado e fortalecido pelo exército, ele se torna apto à renúncia, não só das obras das trevas, mas de todo apetite e de toda afeição que se não sujeita à lei de Deus. Porque, “todo aquele que tem esta esperança – diz S. João – purifica-se a si mesmo, como Ele é puro”. Seu cuidado diário é, pela graça de Deus em Cristo e mediante o sangue da aliança, purificar os mais íntimos recessos de sua alma das concupiscências que dantes a dominavam e desafiavam-na; da impureza, inveja, malícia e ira; de toda paixão e tendência que sejam segundo a carne, decorrendo de sua corrupção nativa ou acariciando-s, bem sabendo que aquele
cujo próprio corpo é templo de Deus, nele não deve admitir coisa alguma que seja comum ou impura; e essa santidade faz que aquela casa venha a ser, para sempre, o lugar em que o Espírito de santidade condescende em habitar.
11. Falta-te, quem quer que sejas, ainda uma coisa: juntar à profunda humildade e à fé inabalável uma viva esperança, e por esta, em boa medida, purifiques o coração de sua contaminação original. Se desejas ser perfeito, aduze àquelas virtudes a caridade; aduze o amor – e aí tens a circuncisão do coração. “O amor é o cumprimento da lei e o fim do mandamento”. Coisas mui excelentes se dizem do amor: é a essência, o espírito, a vida de toda virtude. É não somente o primeiro e grande mandamento, mas resume
em si todos os mandamentos. “Tudo que é justo, tudo que é puro, tudo que é amável” ou digno de honra,“se há alguma virtude, se há algum louvor”, tudo se acha compreendido numa só palavra: - o Amor. Nele
está a perfeição, a glória e a felicidade. A lei real dos céus e da terra é esta: “Amarás o Senhor teu deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de toda a tua mente, e de toda a tua força”.
12. Não que esse mandamento nos proíba de ter amor a outro objeto além de Deus: implica, ao revés, em que amemos também a nosso irmão. Nem proíbe (como alguns tem a extravagância de imaginar), que tenhamos prazer em qualquer coisa, exceto em Deus. Fazer tal suposição é admitir que é Fonte da santidade se deve diretamente imputar a autoria do pecado, uma vez que Ele anexou inseparavelmente o
prazer ao uso daquilo que é necessário ao entretenimento da vida que nos deu. Esta não pode, portanto, ser a significação de seu mandamento. O sentido real nos foi dado pelo bendito Senhor e seus apóstolos
de modo assas freqüente e demasiadamente claro para ser mal compreendido. Todos eles testificam a uma voz que a verdadeira significação das diversas afirmativas, como: “O Senhor teu Deus é o único Senhor”;
“não terás outros deuses diante de mim”, “amarás o Senhor teu Deus de toda a tua força”; “apegar-te-ás a Ele”; “seu nome será o desejo de tua alma”, - nenhuma outra é senão esta: o único perfeito Deus será teu
último fim. Uma coisa só desejarás por sua própria valia: gozar daquele que é Tudo em todas as coisas.
Proporcionarás uma só felicidade à tua alma: - a união com aquele que a formou; ter “comunhão como o Pai e o Filho”: estar unido ao Senhor em um Espírito. Teu único objetivo será preservar até o fim no gozo
de Deus, no tempo e na eternidade. Desejar outras coisas, na medida que elas tendem para esse fim. Amar a criatura conforme ela te conduza ao Criador. Qualquer que seja o caminho que tomares, seja Deus o
alvo glorioso em que se fixem teus ideais. Subordinem-se a esse ideal todas as afeições, pensamentos, palavras e obras. Seja o que for que desejas ou temas, que procures ou evites, penses, fales ou faças – nisso palpite como alvo tua felicidade em Deus, o Fim único e a Fonte de teu ser.
13. Não tenhas fim algum, nenhum fim último, senão Deus. Assim diz o Senhor: “Uma coisa te é necessária”; e, se teus olhos se fixarem com simplicidade nessa coisa única, “todo teu corpo será luminoso”. Assim diz S. Paulo: “Uma coisa faço: avanço em direção ao alvo, para o prêmio da alta vocação em Cristo Jesus”. S. Tiago ensina: “Purificai vossas mãos, pecadores; e purificai vossos
corações, irresolutos”. Diz S. João: “Não ameis o mundo, nem as coisas que são do mundo. Porque tudo que há no mundo – a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a vaidade da vida, não vem do Pai, mas do mundo”. A procura da felicidade nas coisas do mundo gratifica o desejo da carne, agradavelmente falando aos sentidos externos; o desejo dos olhos, da imaginação, se deleita nas novidades, na grandeza, na beleza; a vaidade da vida se compraz na pompa, no esplendor, no poder, ou nas conseqüências costumeiras – o aplauso e a admiração; mas essas coisas “não são do Pai”, não “vem do Pai dos espíritos”
nem por Ele são aprovadas, “mas do mundo: são a marca distintiva dos que não querem que o Senhor reine sobre eles.
II
1. Investiguei especificamente o que seja a circuncisão do coração, que alcança o louvor de Deus. Passo a mencionar, em segundo lugar, algumas reflexões que naturalmente resultam de tal inquérito, com uma clara regra pela qual todo homem julgue por si mesmo se quer pertencer ao mundo ou a Deus.
Primeiro, do que foi fito tornar-se claro que ninguém possui credenciais que o habilitem a agradar a Deus, a não ser que seu coração seja circuncidado pala humanidade; a não ser que se faça pequenino, baixo e vil a seus próprios olhos; a não ser que esteja profundamente convencido da natural “corrupção de sua natureza”, pela qual se encontra muito longe de seu justiça original, pronto, como se acha, para todo o
mal, avesso a todo, o bem, corrupto e abominável, governado pela “mente carnal”, que “é inimizade contra Deus, não se sujeitando à lei de Deus, nem podendo, na verdade, sujeitar-se”; a não ser que
continuamente sinta no íntimo de sua alma que, sem o Espírito Santo repousando sobre si, não pode pensar, nem desejar, nem falar, nem realizar nenhum bem, ou coisa que seja agradável à vista de Deus.
Ninguém, afirmo, possui qualquer direito de agradar a Deus, a menos que sinta falta de Deus; nem, realmente, possui semelhante título, até que busque somente a “glória que vem de Deus”, não desejando nem buscando a que vem do homem, ou as coisas que apenas tendem para isto.
2. Outra verdade, que naturalmente decorre do que se tem dito, é que ninguém obterá a honre que vem de Deus enquanto seu coração não for circuncidado pela fé, uma “fé de operação divina”; enquanto não se recusar a ser levado mais longe por seus sentidos, apetites ou paixões, ou ainda por aquele cego que
conduz outro cego, tão festejado pela razão natural do mundo, mas, ao contrário, viva e ande pela fé, dirija todos os seus passos como quem “vê o que é invisível”, não olhando para “as coisas visíveis, que
são temporais, mas para as coisas que, sendo invisíveis, são eternas”; e governe todos os seus desejos, desígnios e pensamentos, todas as suas ações e conversações, como quem penetrou através do véu, para
além do qual Jesus se assenta à mão direita de Deus.
3. Seria para desejar que melhor se identificassem com essa fé aqueles que empregam muito de seu tempo e de suas energias, deitando outro fundamento, edificando a religião na eterna aptidão das coisas, na intrínseca excelência da virtude na beleza das ações que decorrem dela; em razões, como eles dizem, do bem e do mal, e nas relações dos seres uns com os outros. Nem cogitam de saber se os fundamentos dos
deveres cristãos coincidem ou não com as Escrituras. Se isto fazem, porque ficam perplexos os homens bem intencionados, e tiram dos assuntos mais severos da lei, por uma nuvem de termos, meios de traduzir
em obscuridade as verdades mais claras? Se não, importa-lhes considerar quem é o autor dessa nova
doutrina, sabendo que, embora seja semelhante a um anjo dos céus, o que prega outro Evangelho
diferente do de Jesus Cristo, Deus, por assim dizer, e não nós, já contra ele pronunciou sua sentença:
“Seja anátema”.
4. Nosso Evangelho, não conhecendo nenhum outro fundamento de boas obras além da fé, além de Cristo,
- claramente nos informa que não somos seus discípulos, se negarmos ser Ele o autor dessa fé e de nossas obras, ou que seu Espírito seja o Inspirador e o Aperfeiçoador dessa fé e dessas obras. “Se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não lhe pertence”. Ele só pode vivificar os que estejam mortos para
Deus; pode infundir neles o sopro de vida cristã, e assim preceder, acompanhar e seguir os vivificados com sua graça, de modo a lhes levar os desejos e a boas realizações. E, “quantos são assim conduzidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus”. Esta é a breve e clara exposição da verdadeira religião e
virtude; e “nenhum homem pode lançar outro fundamento”.
5. Do que se tem dito podemos aprender, em terceiro lugar, que ninguém é verdadeiramente “conduzido pelo Espírito”, a não ser que o “Espírito testifique com seu espírito, que ele é filho de Deus”; a não ser que ele veja o prêmio e a coroa diante de si e se “regozije na esperança da glória de Deus”. Muito tem errado os que ensinam que, servindo a Deus, não devemos ter em vista a nossa própria felicidade! Não; somos, ao contrário, freqüente e expressamente ensinados por Deus a “atentarmos para a recompensa da retribuição”; a contrastar o sofrimento com a “alegria colocada diante de nós”, as “aflições passageiras” com o “excelente peso de glória”. Sim, somos “estranhos ao pacto da promessa”, estamos “sem Deus neste mundo”, até que o mesmo Deus, “por sua abundante misericórdia”, outra vez nos gere para a viva
esperança de uma herança incorruptível, incontaminada e que não murcha nunca”.
6. Mas, se estas coisas são assim, é mais do que tempo de essas pessoas usarem de fidelidade para com as próprias almas, que tão longe estão de encontrar essa alegre segurança de que preenchem os termos do
pacto e alcançam as promessas, já que entendem com o próprio pacto, blasfemando seus termos; e queixam-se de que estes sejam demasiadamente severos, não sendo possível que nenhum homem viva ou possa viver na conformidade deles.
Que vem a ser isso, senão uma censura a Deus, como se Ele fora um duro Senhor, exigindo de seus servos mais do que os habilita a cumprir? Como se Ele zombasse das obras inermes de suas mãos, enredando-as
em possibilidades; mandando que vençam, quando nem sua própria força, nem sua graça sejam suficientes à vitória?
7. Esses zombadores quase poderiam persuadir aos que se julgam culpados e que, no extremo oposto, esperam cumprir os mandamentos de Deus sem com isso fazerem o mínimo sacrifício. Vã esperança! Que um filho de Adão possa esperar ver o reino de Cristo e de Deus sem lutar, sem agonizar, primeiro, por
“entrar pela porta estreita”; que o homem, “concebido e nascido em pecado”, e cujo “interior é mui perverso”, possa por um momento acalentar a ideia de ser “purificado como seu Senhor é puro”, sem andar em suas pegadas e sem “diariamente tomar sua cruz”, sem que “corte sua mão direita” e “arranque
o olho direito” e “lance-o longe de ai”; que o homem sonhe em desarraigar as velhas opiniões, paixões, tendências e ser “perfeitamente santificado em espírito, alma e corpo”, sem uma constante e contínua
peleja pela geral negação de si mesmo!
8. Que outra coisa podemos possivelmente inferir das palavras acima citadas de S. Paulo, que, vivendo “em enfermidades, em opróbrios, em necessidades, em perseguições, em penúrias” por amor de Cristo; que, cheio de “sinais, prodígios e feitos maravilhosos”, tendo até “subindo ao terceiro céu”, - ainda
reconhecia, como um escritor moderno incisivamente expressa, que todas as suas virtudes estariam inseguras e sua salvação em perigo, sem esse constante negação de si mesmo? “Assim corro, diz ele, mas
não na incerteza; assim combato, mas não como quem açoita o ar”, ensinando-nos claramente que aquele que assim não corre, que dessa maneira não se nega a si próprio, corre na incerteza e combate com tão mesquinho propósito como o do lutador que “açoita o vento”.
9. Para objetivo de tal insignificância fala de “combater o combate da fé”, vãmente esperando alcançar a coroa incorruptível (como podemos, afinal, inferir das observações precedentes), aquele cujo coração não foi circuncidado! O amor, suprimindo a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a vaidade da vida, empenhando todo o homem – corpo, alma e espírito, - na ardente conquista daquele objetivo único, é tão
essencial ao filho de Deus que, fora disto, embora vivo, é reputado como estando morto diante do Senhor.
“Embora eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tenho amor, sou como o bronze que soa ou como címbalo que retine”. “embora eu tenha o dom de profecia, e compreenda todos os mistérios e toda a ciência; embora tenha a fé, a ponto de remover montanhas, se não tenho amor, nada sou”. “Ainda se eu
der todos os meus bens para o sustento dos pobres, e meu corpo para ser queimado, se não tenho amor, isso de nada me aproveita”.
10. Eis, pois, aí a súmula da lei perfeita; esta é a verdadeira circuncisão do coração. Volte o espírito para Deus que o criou, com todo o séquito de suas afeições. Subam, estas “para o lugar aonde todos os rios vão
Ter” e de lá jorrem de novo. Outros sacrifícios Deus não os reclama, senão o sacrifício vivo do coração que Ele escolheu. Que o homem se ofereça continuamente a Deus através de Cristo, em chamas de vivo
amor. E a nenhuma criatura se permita partilhar desse amor, porque Deus é um Deus zeloso. Ele não dividirá com outrem o seu trono: reinará sem opositor. Nenhum desígnio, nenhum desejo se admita, que não tenha a Deus como derradeiro alvo. Este é o caminho pelo qual andaram os filhos escolhidos de
Deus, os quais, apesar de mortos, ainda falam: “Não desejes viver, senão para louvar seu nome: que todos os teus pensamentos, palavras e obras tendam para sua glória. Pões teu coração firmemente nele e cogita das outras coisas apenas segundo elas estejam em Deus e dele decorram. Que tua alma se encha tão completa-mente de seu amor, que não ames a qualquer outra coisa senão por amor dele”. “Em todas as tuas ações esteja teu coração repleto de intenção pura, de inabalável atenção à sua glória”. “Fixa teus
olhos na bendita esperança de tua vocação e faze todas as coisas do mundo a Ele servirem”. Porque então, e não antes, é que, teremos “em nós aquela mente que era também em Cristo Jesus”, e assim, em todo
movimento de nosso coração em toda palavra de nossa língua, em toda obra de nossas mãos, “não empreendemos coisa alguma, senão em relação a Ele e em subordinação à sua vontade”; nem pensamos, nem falamos, nem fazemos obra alguma para cumprir nossa “própria vontade, mas a vontade daquele que
nos enviou”; e então, “quer comamos, ou bebamos, ou façamos qualquer coisa, tudo fazemos para a glória de Deus”.
Jown Wesley
Enviado por Silvio Dutra Alves em 09/03/2014