Evangelho 14
“Não julgueis, para que não sejais julgados.” (Mt 7.1)
Em todo este sétimo capítulo de Mateus, o tema principal é o do juízo.
O Senhor nos recorda em todo o momento em seu ensino que nossa estamos de viagem aqui neste mundo, numa peregrinação, e que conduz a um juízo final, a uma última avaliação, e à determinação e proclamação do nosso destino eterno.
A metade de nossos problemas se devem ao fato de vivermos como assumindo que esta é a única vida e o único mundo. Claro que sabemos que isso não é assim; porém há uma grande diferença entre saber uma coisa e guiar-se e governar-se realmente por este conhecimento na vida e perspectivas ordinárias.
Nosso Senhor inicia sua consideração desta grande questão acerca de nosso caminhar neste mundo, sob um sentido de juízo, em função do ponto específico de se julgar uns aos outros. “Não julgueis”. Nosso Senhor segue usando o mesmo método que tem usado ao longo deste sermão. Faz um pronunciamento e o apresenta depois numa forma mais lógica e detalhada.
Faz primeiro o pronunciamento “Não julgueis”.
Se nos apresenta aqui uma afirmação que frequentemente, tem conduzido a muita confusão. Temos que reconhecer que é um tema que pode ser muito facilmente, ser mal entendido.
Houve épocas na história da Igreja em que se louvava aos homens que mantinham seus princípios a todo custo. Porém, hoje em dia não é assim. Estes homens são considerados como difíceis, pouco cooperadores e assim por diante. Hoje se glorifica ao homem que se pode descrever como “do centro”, ao homem agradável, que não cria dificuldades, nem problemas devia a seus pontos de vista. A vida, nos dizem, já é bastante difícil e complexa como é, sem necessidade de se tomar posturas firmes relativas a doutrinas específicas.
Numa época como a nossa, pois, há suma importância em poder interpretar corretamente esta afirmação relativa a julgar, porque há muitos que dizem que esse “não julgueis” deve ser entendido simples e literalmente como é, com o significado de que o cristão verdadeiro nunca deve expressar opiniões acerca dos outros. Dizem que nunca se deve julgar, que devemos ser brandos, indulgentes e tolerantes, e permitir praticamente tudo, em prol da paz e da tranquilidade, e sobretudo da unidade. (Este juízo é formado sem se levar em conta tudo o que a Bíblia ensina relativamente ao assunto, senão somente no que é da conveniência e imaginação das próprias pessoas – nota do tradutor).
Esta época não é época para este tipo de juízos, dizem; o que se necessita hoje em dia é unidade e comunhão. Todos devemos ser um. (Argumenta-se principalmente contra posições radicais que possam servir para aumentar as divisões no mundo, e assim, apela-se por uma paz mundial, especialmente sem fronteiras religiosas, sociológicas etc – nota do tradutor).
Todavia, se tomarmos o próprio contexto da afirmação do “não julgueis”, veremos que esta interpretação é completamente impossível.
Tomemos por exemplo o verso 6: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para não acontecer que as calquem aos pés e, voltando-se, vos despedacem.” Como posso colocar isto em prática sem o exercício do juízo? Como posso saber que tipo de pessoa pode ser descrita desta forma como porco e cão?
Vejamos também a afirmação do verso 15: “Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores.” Como devemos interpretar isso? Não posso guardar-me dos falsos profetas se não penso e se tenho tanto medo de julgar o ensino deles.
Assim, pois, sem ir mais longe, essa interpretação não pode ser a interpretação verdadeira porque diz que significa somente ser “livre e fácil”, e ter uma atitude branda e indulgente com qualquer um que em forma vaga se chame cristão. É completamente impossível.
A própria Bíblia nos ensina que o juízo deve ser exercitado em relação aos assuntos do Estado. Os juízes e magistrados recebem o poder de Deus e que o magistrado deve pronunciar juízo, e que esse é seu dever. É parte do método que Deus tem para frear o mal e o pecado e os efeitos dos mesmos neste mundo temporal. Portanto, se alguém diz que não crê nos tribunais de justiça, contradiz a Bíblia.
Se encontra também o mesmo ensino na Bíblia relativamente à igreja. A disciplina era, para os pais protestantes, sinal tão distintivo da Igreja como a pregação da Palavra e administração dos sacramentos. Porém sabemos muito pouco sobre a disciplina. É o resultado desta noção frouxa e sentimental de que não há que se julgar, e que pergunta: “Quem és tu para julgar?” Porém a Bíblia nos exorta a fazê-lo.
Que significa então a exortação de nosso Senhor “Não julgueis”?
Nosso Senhor não nos diz que não temos que fazer avaliações baseados em juízos, porém que estejamos muito preocupados pelo assunto de condenar. Ao tentarem evitar esta tendência de condenar, algumas pessoas têm chegado ao outro extremo, e com isso se encontram também numa posição falsa. A vida cristã não é tão fácil. A vida cristã é sempre vida de equilíbrio. Têm bastante razão os que dizem que andar por fé significa andar por um fio de uma navalha. Alguém pode cair de um lado ou de outro, mas tem que se manter no centro mesmo da verdade, evitando o erro tanto de uma lado como de outro. Portanto, ainda que digamos que não significa se negar a exercitar o discernimento ou o juízo, devemos nos apressar a dizer nos põe de sobreaviso contra o terrível perigo de condenar, de pronunciar juízos num sentido definitivo.
Que perigo é este acerca do qual nosso Senhor nos põe de sobreaviso? Podemos dizer antes de tudo que é uma espécie de espírito, um espírito que se manifesta de certos modos. Que é este espírito que condena? É o espírito orgulhoso de sua própria justiça. O ego está sempre na raiz do mesmo, e é sempre uma manifestação de auto-justificação, um sentido de superioridade, um sentido que nós andamos bem enquanto que outros não. Isto conduz então ao espírito de censura, ao espírito que sempre está disposto a se expressar de forma detratora. E logo, junto com isto, se dá a tendência de desprezar aos outros, a tê-los em pouca conta. Não somente estou descrevendo os fariseus, estou descrevendo a todos os que têm o espírito farisaico.
Me parece também que uma parte de importância vital deste espírito é a tendência a ser hipercrítico. Há uma grande diferença entre ser critico e ser hipercrítico. O verdadeiro espírito de crítica é algo excelente. Desgraçadamente, é muito raro. A crítica verdadeira nunca é simplesmente destrutiva; é construtiva, é uma apreciação.
O homem que é réu de julgar, no sentido em que nosso Senhor emprega o termo aqui, é o hipercrítico, o qual significa que se deleita na crítica pela própria crítica e com isso se alegra. É o homem que se ocupa do que é criticável com a esperança de encontrar faltas, quase anelando encontrá-las.
O espírito hipercrítico nunca se sente realmente feliz a não ser que encontre estas faltas.
O melhor comentário a este respeito se encontra em Romanos 14, onde Paulo diz aos romanos em detalhe que evitem o julgar-se mutuamente em assuntos como a comida e a bebida, e como o considerar um dia mais importante que outro. Haviam situado estes assuntos numa posição destacada, e se julgavam e condenavam em função destas coisas.
Não se pode decidir se alguém é cristão ou não, examinando as ideias que têm acerca de assuntos como estes, os quais não são importantes.
Se descobrimos que temos prazer em saber acerca das faltas de outros, essa é a atitude que conduz a este espírito de juízo que nos torna réus perante o Senhor.
Este espírito se manifesta na realidade na tendência de emitir juízos definitivos acerca das pessoas como tais. Isto significa que não é tanto um juízo do que fazem ou creem ou dizem, senão das próprias pessoas.
É um juízo definitivo da pessoa, e o que o faz tão terrível é que para ser assim, se arroga algo que pertence a Deus.
Este é um tema difícil, e até agora temos examinado somente o mandamento. Não temos estudado todavia a razão que nosso Senhor agrega ao mandamento. Simplesmente, temos tomado as duas palavras, e confia que sempre as recordamos: “Não julgueis”. Ao cumpri-lo agradecemos a Deus por ter um evangelho que nos diz que “sendo ainda pecadores, Cristo morreu por nós”, que ninguém se mantém por sua própria justiça, senão pela justiça de Cristo. Sem Ele estamos condenados, completamente perdidos. Temos nos condenado a nós mesmos ao julgar a outros. Deus é Senhor e nosso Juiz, e Ele nos tem proporcionado uma forma de passar do juízo para a vida. A exortação é para viver nossa vida neste mundo como pessoas que têm passado pelo juízo “em Cristo” e que agora vivem por Ele e como Ele, dando-se conta de que têm sido salvos por Sua graça e misericórdia maravilhosas.
Por D. M. Lloyd Jones ( traduzido e adaptado por Silvio Dutra)
D. M. Lloyd Jones
Enviado por Silvio Dutra Alves em 09/06/2014