Legado Puritano
Quando a Piedade Tinha o Poder
Textos
Sacrificando a Antiga Vida Para Obter Uma Nova

 
Por João Calvino
 
“Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.” (Romanos 12.1)
 
Depois de ter apresentado as coisas que são necessárias para a construção do reino de Deus, - que a justiça deve ser buscada apenas de Deus, que a salvação deve vir até nós somente a partir de sua misericórdia, que todas as bênçãos nos são concedidas diariamente por nos serem oferecidas somente em Cristo - Paulo passa de agora em diante, de acordo com uma melhor ordem, a mostrar como a vida deve ser ordenada. Se for, através do conhecimento salvífico de Deus e de Cristo, que a alma é, por assim dizer, regenerada em uma vida celestial, e que esta vida é formada e regulada pelas exortações e preceitos santos; então é em vão você mostrar o desejo de formar a vida corretamente, exceto que você prove em primeiro lugar, que a origem de toda a justiça nos homens está em Deus e Cristo; porque é deles o levantar-nos da morte.
“Portanto, rogo-vos, pelas misericórdias de Deus”. O que Paulo diz, ao exortar-nos assim, deveria ter mais poder sobre nós, na medida em que ele se destaca de todos os outros em estabelecer a graça de Deus. De ferro deve ser de fato o coração que não é acendido pela doutrina que tem sido anunciada em amor para com Deus, cuja bondade é achada por ter sido tão abundante. Onde, então, estão os que pensam que todas as exortações a uma vida santa são nulas, se a salvação dos homens depende somente da graça de Deus, já que por nenhum preceito, por nenhuma sanção, é forjada uma mente tão piedosa para prestar obediência a Deus, senão por uma séria meditação sobre a bondade divina para com ele?
Também podemos observar aqui a benevolência do espírito do Apóstolo, - que preferiu lidar com os fiéis por admoestações e exortações amigáveis ​​ao invés de comandos rigorosos; pois ele sabia que poderia prevalecer mais com o ensino desta forma do que em qualquer outra.
“Que ofereçais os vossos corpos, etc”. Isto é então o começo de um curso correto em boas obras, quando entendemos que somos consagrados ao Senhor; por causa disto, portanto, segue-se que devemos deixar de viver para nós mesmos, a fim de que possamos dedicar todas as ações de nossa vida a seu serviço.
Há, então, duas coisas a serem consideradas aqui, -  primeiro, que somos do Senhor, - e em segundo lugar, que devemos em razão disso, ser santos, pois seria uma indignidade para a santidade de Deus, que nada, nem mesmo uma primeira consagração, fosse  oferecido a ele. Essas duas coisas sendo admitidas, então, segue-se que a santidade é para ser praticada por toda a vida, e que nós somos culpados de uma espécie de sacrilégio quando somos relapsos em impureza, pois isto nada mais é do que profanar o que é consagrado.
Mas há toda uma grande idoneidade nas expressões. Ele diz que em primeiro lugar, o nosso corpo deveria ser oferecido como um sacrifício a Deus; por que ele implica que não somos de nós mesmos, senão que temos passado inteiramente, de modo a tornar-nos propriedade de Deus; o que não pode existir, a menos que renunciemos a nós mesmos e, portanto, neguemos a nós mesmos. Então, em segundo lugar, através da adição de dois adjetivos, ele mostra que tipo de sacrifício deveria ser este. Ao chamá-lo vivo, ele sugere, que somos sacrificados ao Senhor para este fim, - que a nossa vida anterior sendo destruída em nós, possa se elevar a uma nova vida. Pelo termo santo, ele ressalta aquilo que necessariamente pertence a um sacrifício, porque a vítima é, então, somente aprovada, quando já tivesse sido feita santa, ou seja, separada e consagrada a Deus. Pela terceira palavra, aceitável, ele lembra que a nossa vida está enquadrada corretamente, quando este sacrifício é feito de modo a ser agradável a Deus; ele nos traz, ao mesmo tempo, nenhuma consolação comum; pois ele nos ensina, que o nosso trabalho é agradável e aceitável a Deus quando nos devotamos à pureza e à santidade.
Por corpos ele quer dizer não somente os nossos ossos e carne, mas toda a massa da qual somos compostos; e ele adotou esta palavra, para que pudesse designar mais plenamente tudo o que somos; porque os membros do corpo são os instrumentos com os quais nós executamos nossos propósitos. Ele na verdade exige de nós  santidade, não só quanto ao corpo, mas também quanto à alma e ao espírito, como em 1 Tessalonicenses 5.23. Na ordem de apresentar nossos corpos, ele alude aos sacrifícios mosaicos, que eram apresentados no altar, como se fosse na presença de Deus. Mas ele mostra, ao mesmo tempo, de forma marcante, quão prontos devemos ser para receber os mandamentos de Deus, para que, sem demora, os obedeçamos.
Por isso aprendemos, que todos os mortais, cujo objetivo não é adorar a Deus, nada fazem, senão miseravelmente vagar e se extraviar. Agora, também encontramos que sacrifícios Paulo recomenda à Igreja cristã; porque somos reconciliados a Deus através do único e verdadeiro sacrifício de Cristo, somos todos, pela sua graça, feitos sacerdotes, a fim de que possamos nos dedicar e tudo o que temos para a glória de Deus. Nenhum sacrifício de expiação é requerido de nós; e ninguém pode afirmar que o seja, sem lançar um opróbrio manifesto na cruz de Cristo.
“O vosso culto racional”. Esta frase, eu penso, foi adicionada, para que ele pudesse aplicar de forma mais clara e confirmar a exortação anterior, como se ele tivesse dito: - "oferecei-vos como um sacrifício a Deus, se tendes vosso coração para servir a Deus porque esta é a maneira correta de servir a Deus; a partir da qual, se alguém se aparte, são senão falsos adoradores." Se, pois, somente Deus é justamente adorado, quando observamos todas as coisas de acordo com o que ele prescreveu, para fora então com todos esses modos elaborados de adoração, que ele abomina com justiça, uma vez que ele valoriza a obediência mais do que o sacrifício. Os homens estão, de fato, satisfeitos com suas próprias invenções, que têm uma exibição vazia de sabedoria, como Paulo diz em outro lugar; mas aprendemos aqui o que o Juiz celestial declara em oposição a isto, pela boca de Paulo; chamando-nos para aquele culto racional, que ele ordena, e que repudia como tolo, insípido e presunçoso, o que quer que tente ir além da regra de sua Palavra.
 
Traduzido e adaptado por Silvio Dutra.

João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 30/08/2014
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