Legado Puritano
Quando a Piedade Tinha o Poder
Textos
Comentário de 2 Tessalonicenses 3.2
Por João Calvino

“E para que sejamos livres de homens dissolutos e maus; porque a fé não é de todos.” (2 Tessalonicenses 3.2)

“Para que sejamos livres”. O intérprete antigo traduziu isto, não inadequadamente, em minha opinião, por irracionais. Ora, por este termo, assim também como por aquele que vem em seguida (poneron - maus), Paulo se refere a homens ímpios e traiçoeiros, que espreitavam na Igreja, sob o nome de cristãos; ou, ao menos, a judeus que, com um zelo insano pela lei, perseguiam furiosamente o evangelho. Ele sabia, porém, quanto perigo pairava sobre ambas estas classes. Crisóstomo, no entanto, pensa que são referidos apenas aqueles que se opunham maliciosamente ao evangelho por meio de falsas doutrinas – não por armas de violência, como por exemplo Alexandre, Himeneu, e outros como eles; mas, de minha parte, estendo isto genericamente a todos os tipos de perigos e inimigos. Naquela ocasião ele estava a caminho de Jerusalém, e escrevia durante as suas jornadas. Ora, ele já havia sido divinamente prevenido de que lhe aguardavam prisões e perseguições lá (Atos 20:23). Contudo, ele se refere ao livramento, para que possa sair vitorioso, quer pela vida ou pela morte.
“A fé não é de todos”. Isto poderia ser explicado no sentido de que “a fé não está em todos”. Contudo, esta expressão seria tanto ambígua como mais obscura. Portanto, retenhamos as palavras de Paulo, pelas quais sugere que a fé é um dom de Deus que é mui raro para ser encontrado em todos. Portanto, Deus chama a muitos que não vêm a ele pela fé. Muitos pretendem vir a ele, tendo seu coração à maior distância dele. Além disso, ele não fala de todos indiscriminadamente, mas apenas censura aqueles que pertencem à Igreja – pois os tessalonicenses sabiam que muitíssimos tinham aversão à fé; mais ainda, eles sabiam quão pequeno era o número dos crentes. Por isso, teria sido desnecessário dizer isto quanto aos estranhos; mas Paulo simplesmente afirma que todos quantos fazem confissão de fé não são tais na realidade. Se considerásseis todos os judeus, eles pareceriam ter uma proximidade com Cristo, pois deveriam tê-lo reconhecido por meio da lei e dos profetas. Não pode haver dúvida que Paulo assinala especialmente aqueles com quem teria de se ver. Ora, é provável que fossem aqueles que, embora tivessem aparência e título honroso de piedade, estavam muito distantes da realidade. Disto veio o combate.
Portanto, com vistas a mostrar que não era sem fundamento, ou sem um bom motivo, que antecipava com receio as lutas com homens ímpios e perversos, ele afirma que a fé não é comum a todos, porque os ímpios e réprobos sempre estão misturados com os bons, assim como o joio com o bom trigo (Mt 13.25). E isto deveria ser recordado por nós sempre que temos aborrecimentos causados por pessoas ímpias, as quais, não obstante, desejam ser consideradas como pertencentes à sociedade dos cristãos – que nem todos os homens têm fé. Mais ainda, quando ouvimos em algumas situações que a Igreja é afligida por aviltantes facções, que seja este um escudo para nós contra escândalos desta natureza; pois não apenas cometeremos injustiça aos mestres piedosos, se tivermos dúvidas quanto à sua fidelidade, sempre que inimigos domésticos lhes causem dano, mas a nossa fé vacilará de quando em quando, a menos que tenhamos em mente que, entre aqueles que se gloriam do nome de cristãos, existem muitos que são traiçoeiros.
João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 08/09/2014
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