Comentário de Judas 1.9,10
Por João Calvino
“9. Mas o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo, e disputava a respeito do corpo de Moisés, não ousou pronunciar juízo de maldição contra ele; mas disse: O Senhor te repreenda.
10. Estes, porém, dizem mal do que não sabem; e, naquilo que naturalmente conhecem, como animais irracionais se corrompem.”
9. “Mas o arcanjo Miguel”. Pedro apresenta este argumento de forma mais breve, e declara genericamente que os anjos, muito mais excelentes que os homens, não se atrevem a pronunciar juízo de maldição (2 Pe 2:11).
Mas como se acredita que esta história fosse tirada de um livro apócrifo, por isso tem sido dado menos importância a esta Epístola. Mas, visto que os judeus daquele tempo derivavam muitas coisas das tradições dos pais, não vejo nada de desarrazoado em dizer que Judas se referiu ao que já havia sido transmitido por muitas gerações. Sei que, de fato, muitas puerilidades haviam alcançado o nome de tradição, assim como nos tempos de hoje os papistas relatam como tradições muitos dos desvarios estúpidos dos monges. Mas isto não é motivo para que eles não tivessem alguns fatos históricos não consignados à escrita.
Está fora de controvérsia que Moisés foi sepultado pelo Senhor, ou seja, que o seu sepulcro foi escondido segundo o propósito oculto de Deus. E a razão para esconder o seu sepulcro é evidente a todos, isto é, para que os judeus não apresentassem seu corpo para promover superstição. Então qual o motivo de surpresa quando, tendo o corpo do profeta sido escondido por Deus, Satanás tentasse manifestá-lo; e que os anjos, que sempre estão prontos para servir a Deus, por outro lado lhe resistissem? E sem dúvida sabemos que Satanás quase em todas as épocas tem se esforçado para transformar os corpos dos santos de Deus em ídolos para os homens insensatos. Portanto, esta Epístola não deveria ser suspeita por conta deste testemunho, ainda que não encontrado na Escritura.
Que Miguel seja apresentado sozinho como disputando contra Satanás não é novidade. Sabemos que miríades de anjos estão sempre prontos a prestar serviço a Deus. Mas ele escolhe este ou aquele para fazer seu negócio conforme lhe agrada. O que Judas relata como tendo sido dito por Miguel, encontra-se também no livro de Zacarias: “O Senhor te repreenda (ou, impeça), Satanás” (Zc 3:2).
E isto é uma comparação, como dizem, entre o maior e o menor. Miguel não se atreveu a falar mais severamente contra Satanás (ainda que um réprobo e condenado) do que entregá-lo a Deus para que fosse refreado. Mas aqueles homens não hesitavam em carregar de censuras extremas os poderes que Deus havia adornado com honras peculiares.
10. “Estes, porém, falam mal do que não sabem”. Ele quer dizer que eles não tinham nenhuma inclinação por qualquer coisa que não fosse grosseira, e como que bestial, e por isso não percebiam o que era digno de honra. E, contudo, à loucura acrescentavam audácia, de modo que não temiam condenar coisas acima da sua compreensão. E eles também laboravam sob outro mal, pois, quando eram levados como animais às coisas que gratificavam os sentidos do corpo, não observavam nenhuma moderação, mas se fartavam excessivamente, como porcos que rolam na lama fétida. O advérbio naturalmente está em oposição à razão e ao juízo, pois somente o instinto da natureza controla os animais irracionais, mas a razão deveria governar os homens e refrear os seus apetites.
João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 22/09/2014