Comentário de João 8.44,45
Por João Calvino
“44 Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da menti
45 Mas, porque eu digo a verdade, não me credes.”
(Nota do tradutor: Foi somente depois de muito insistir pacientemente com os judeus para que entendessem que necessitavam ser libertados por Ele do domínio do pecado, que nos torna também escravos de Satanás, que nosso Senhor se dirigiu aos judeus com estas palavras não com o intuito de feri-los ou ofendê-los, como eles estavam fazendo com Ele, mas simplesmente de alertá-los, por misericórdia, qual era o verdadeiro estado miserável em que eles se encontravam diante de Deus, e não somente eles, mas toda a humanidade, por causa do pecado.)
44. “Vós tendes por pai o diabo”. O que Jesus tinha dito duas vezes antes, nos versos anteriores, de modo velado, agora ele expressa mais plenamente, que os judeus que contendiam com ele eram filhos do diabo, mas temos que apresentar o contraste, que eles não podiam acalentar tal ódio intenso para com o Filho de Deus, se não fosse pelo fato de que eles tinham por pai o inimigo perpétuo de Deus. Ele os chama de filhos do diabo, não somente porque eles imitam suas obras, mas porque eles são liderados por sua instigação a lutar contra Cristo. Porque, assim como nós somos chamados de filhos de Deus, não só porque nos assemelhamos a ele, mas porque ele nos governa pelo seu Espírito, porque Cristo vive e é poderoso em nós, de modo a nos conformar à imagem de seu Pai; assim, por outro lado, do diabo é dito ser o pai daqueles cujo entendimento ele cega, cujo coração ele move para cometer toda forma de injustiça, e em quem, em suma, atua poderosamente e exerce sua tirania; como vemos em 2 Coríntios 4.4; Efésios 2.2, e em outras passagens.
Os maniqueístas tola e inutilmente abusaram desta passagem para provar seus dogmas absurdos. Porque, desde que a Escritura nos chama de filhos de Deus, isso não se refere à transmissão ou origem da substância divina, mas à graça do Espírito, que nos regenera para uma novidade de vida; de modo que esta afirmação de Cristo não se relaciona à transmissão de substância, mas à corrupção da natureza, da qual a rebelião do homem foi a causa e origem. Quando os homens, portanto, nascem filhos do diabo, isto não deve ser imputado à criação, mas à culpa do pecado. Agora Cristo prova isso a partir do efeito, porque eles voluntariamente, e por sua própria vontade, estão dispostos a seguir o diabo.
“Ele foi homicida desde o princípio”. Ele explica o que são aqueles desejos e menciona dois casos, crueldade e falsidade; em que os judeus muito se assemelhavam a Satanás. Quando ele diz que o diabo era um assassino, ele quer dizer que ele planejou a destruição do homem; porque tão logo o homem fora criado, Satanás, impulsionado por um desejo perverso de causar injúria, se esforçou para destruí-lo. Cristo não se refere ao princípio da criação, como se Deus tivesse implantado nele a disposição de fazer dano desde que fora criado; mas ele condena em Satanás a corrupção da natureza, que ele trouxe sobre si mesmo. Isto aparece de forma mais clara a partir da frase, em que ele diz:
“Ele não permaneceu na verdade”. Pois, ainda que aqueles que imaginam que o diabo era mau por natureza, se esforçando para produzir enganos, todavia estas palavras afirmam claramente que houve uma mudança para pior, e que a razão pela qual Satanás era um mentiroso era, que se revoltou contra a verdade Que ele é um mentiroso, não surge a partir de sua natureza ter sido sempre contrária à verdade, mas porque ele caiu desta por uma queda voluntária. Esta descrição de Satanás é muito útil para nós, para que todas as pessoas possam se esforçar para ter cuidado com suas armadilhas, e, ao mesmo tempo, repelir sua violência e fúria; com que ele ruge como um leão, buscando a quem possa tragar (1 Pedro 5.8), e tem mil estratagemas em seu comando para enganar. Tanto mais deveriam os crentes a ser abastecidos com armas espirituais para lutar, e tanto mais intensamente deveriam manter guarda com vigilância e sobriedade. Agora, se Satanás não pode deixar de lado essa disposição, não devemos ficar alarmados com isso, como se fosse uma nova e incomum ocorrência, quando os erros brotam extremamente numerosos e variados; porque Satanás usa seus seguidores como foles, para enganar o mundo por seus ardis. E nós não precisamos ficar surpresos que Satanás faça tais esforços extenuantes para extinguir a luz da verdade; pois ela é a única vida da alma. Assim, então, a ferida mais importante e mais mortal para matar a alma é a falsidade.
“Porque a verdade não está nele”. Esta declaração, que imediatamente segue a anterior, é uma confirmação, a posteriori, ou seja, que é retirada do efeito. Porque Satanás odeia a verdade, e portanto, não pode suportá-la, mas, ao contrário, é inteiramente coberto com falsidades. Daí Cristo infere que ele está totalmente caído da verdade, e totalmente afastado dela. Não vamos nos maravilhar, portanto, se ele exibe diariamente os frutos de sua apostasia.
“Quando ele profere mentira”. Estas palavras geralmente são explicadas como se Cristo tivesse afirmado que a culpa da mentira não pertence a Deus, que é o Autor da natureza, mas, ao contrário, procede de corrupção. Mas eu explico de forma mais simples, que é habitual ao diabo falar mentira, e que ele nada sabe, senão inventar corrupções, fraudes, e enganos. E ainda assim, com justiça inferimos a partir destas palavras, que o diabo tem esse vício de si mesmo, e que, enquanto isto que é peculiar a ele, pode igualmente ser considerado acidental; porque, ao mesmo tempo Cristo ao afirmar ser o diabo o inventor da mentira, ele evidentemente o separa de Deus, e ainda declara que ele é contrário a Deus.
“Porque ele é um mentiroso, e pai da mentira”. A palavra pai tem o mesmo objeto como a declaração anterior; porque a razão pela qual é dito de Satanás ser o pai da mentira é, porque ele está afastado de Deus, em quem somente a verdade habita e de quem flui como a sua única fonte.
45. “Mas porque eu digo a verdade”. Jesus confirma a declaração anterior; porque, uma vez que os judeus não têm outra razão para se oporem a ele, senão porque a verdade é odiosa e intolerável para eles, eles mostram claramente que são filhos de Satanás.
Traduzido e adaptado por Silvio Dutra.
João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 28/09/2014