A Vida Eterna é Por Ouvir e Crer no Evangelho - Comentário de João 5.24
Por João Calvino
“Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida.” (João 5.24)
“Aquele que ouve a minha palavra”. Aqui descreve-se a forma e modo de honrar a Deus, para que ninguém possa pensar que consiste unicamente em qualquer desempenho exterior, ou em cerimônias frívolas. Porque a doutrina do Evangelho parece como um cetro de Cristo, pelo qual ele governa os crentes a quem o Pai tem feito seus súditos. E esta definição é eminentemente digna de nota. Nada é mais comum do que uma falsa profissão de cristianismo; mesmo porque há muitos que se intitulam líderes religiosos cristãos, que são os inimigos mais inveterados de Cristo, por fazerem uma ostentação presunçosa do seu nome. Mas aqui Cristo não exige de nós nenhuma outra honra que não seja a de obedecer ao seu Evangelho. Por isso segue-se que toda a honra que hipócritas concedem a Cristo é, senão o beijo de Judas, porque ele traiu o seu Senhor. Embora eles possam chamá-lo cem vezes de Rei, ainda assim o privam de seu reino e de todo o seu poder, quando não exercem fé no Evangelho.
“Tem a vida eterna”. Por estas palavras, ele elogia igualmente o fruto da obediência, para que possamos estar mais dispostos a lhe obedecer. Porque quem deveria estar tão endurecido como para não se submeter voluntariamente a Cristo, quando a recompensa da vida eterna é oferecida a ele? E, no entanto, vemos quão poucos há que garantem para si mesmos tão grande bondade. Tão grande é a nossa depravação que escolhemos, morrer de vontade própria do que nos rendermos à obediência ao Filho de Deus, para que sejamos salvos pela sua graça. Ambos, portanto, estão aqui incluídos por Cristo - o manto de devoção e adoração sincera que ele requer de nós, e o método pelo qual ele nos restaura a vida. Porque não seria suficiente entender o que ele anteriormente ensinou, que ele veio para ressuscitar os mortos, a não ser que também saibamos a maneira pela qual ele nos restaura a vida. Agora, ele afirma que a vida é obtida pelo ouvir a sua palavra, e por ouvir a palavra ele quer se referir à fé, como ele logo em seguida declara. Mas a fé tem a sua sede não nos ouvidos, mas no coração. De onde deriva a fé tão grande poder, já anteriormente explicado. Devemos sempre considerar o que é que o Evangelho nos oferece; para que não nos surpreendamos que aquele que recebe Cristo com todos os seus méritos é reconciliado com Deus, e absolvido da condenação de morte; e que aquele que recebeu o dom do Espírito Santo está vestido com uma justiça celestial, para que possa caminhar em novidade de vida (Romanos 6.6). A frase que é adicionada, “crê naquele que me enviou”, serve para confirmar a autoridade do Evangelho: quando Cristo testifica que esta autoridade do evangelho veio de Deus, e não foi inventada por homens, como ele em outro lugar diz, que o que ele fala não é dele mesmo, mas foi entregue a ele pelo Pai (João 7.16; 14.10).
“E não entrará em condenação”. Há aqui um contraste implícito entre a culpa da qual todos nós somos naturalmente responsáveis, e a absolvição incondicional que obtemos por meio de Cristo; pois se todos não fossem passíveis de condenação, para que propósito serviria livrar dela aqueles que creem em Cristo? Assim, o significado é que estamos além do perigo de morte, porque somos absolvidos pela graça de Cristo; e, portanto, embora Cristo santifique e nos regenere, pelo seu Espírito, em novidade de vida, mas aqui ele menciona especialmente o perdão incondicional dos pecados, no qual somente a felicidade dos homens consiste. Por que, então, um homem começa a viver quando tem sido reconciliado com Deus; e como é que Deus nos amaria, se ele não perdoasse nossos pecados?
“Mas já passou”. Algumas versões latinas têm esse verbo no tempo futuro, vai passar da morte para a vida; mas esta surgiu da ignorância e imprudência de alguma pessoa que, sem entender o significado do Evangelista, deu-se mais liberdade do que deveria ter tomado; porque a palavra grega Metabebeke (já passou) não tem qualquer ambiguidade que seja. Não há qualquer impropriedade em dizer que já passamos da morte para a vida; porque a semente incorruptível de vida (1 Pedro 1.23) habita nos filhos de Deus, e eles já se sentaram na glória celestial com Cristo, pela esperança (Colossenses 3. 3), e eles têm o reino de Deus já estabelecido dentro deles (Lucas 17.21). Pois, embora a sua vida esteja escondida, eles deixam, por conta disso, de possuí-la pela fé; e embora a sua fé seja assediada por todos os lados, eles não deixam de estar calmos por esse motivo, porque sabem que estão em perfeita segurança através da proteção de Cristo. No entanto, lembremo-nos de que os crentes estão agora na vida de tal maneira que sempre carregam com eles a causa de morte; mas o Espírito, que habita em nós, é a vida, e ele irá destruir totalmente os resquícios de morte; pois é uma verdadeira palavra de Paulo, que a morte é o último inimigo a ser destruído (1 Coríntios 15.26).
E, de fato, essa passagem não contém nada que diga respeito à completa destruição da morte, ou de toda a manifestação da vida. mas, apesar da vida ser somente começada em nós, Cristo declara que os crentes estão tão certos de obtê-la, que eles não devem temer a morte; e não precisamos nos surpreender com isto, uma vez que estamos unidos a Ele que é a inesgotável fonte da vida.
Traduzido e adaptado por Silvio Dutra.
João Calvino
Enviado por Silvio Dutra Alves em 03/10/2014